Sunday, January 17, 2010

Sacode a poeira

Meus passos ecoam no vazio. Minhas mãos apanham folhas de papel empoeiradas, e as limpam. Voltei para casa, estou caminhando em meu blog! Vejam, vejam, caveiras! Serão de leitores?

Dois anos sem postar. Fui para a Nova Zelândia. Voltei. Me formei. E aí, primo João, como está? Quando comecei a postar aqui eras mais novo do que eu agora. E aí, senhor Thiago? Recomendaste-me Watchmen por aqui, li.

Vocês estão aí? Estou feliz aqui na minha ilha deserta. Compadre Andrij passa sobre minha cabeça em um balão e grita ''oi'', fazendo uma visita ocasional.

Esta é a Ulisseslândia, minha Disneylândia paraguaia. Muitos textos são ruins, mas vários são legais. Não repare a bagunça, nem as teias de aranha. Nem a avacalhação. Pois se não escrevo cerebralmente agora, escrevo de coração.

Tenho alguns textos assando no forno, prometo que vou postar para as moças e rapazes!

Tuesday, January 15, 2008

Asas Negras

Certa manhã, Antônio estava na garagem de sua casa, preparando-se para ir à faculdade, quando notou algo que lhe perturbou. Dois grandes urubus estavam pousados na sacada de um prédio do outro lado da rua, e pareciam estar observando-o.
‘’Deixa de bobagem, Antônio, são só dois pássaros’’, pensou, enquanto entrava em seu veículo.
Durante a aula, porém, o jovem estava distraído, olhando pela janela da sala, quando viu outro urubu, pousado em uma árvore distante, a algumas dezenas de metros do edifício onde estudava.
Perturbado com aquilo, desviou o olhar e voltou a prestar atenção no professor.
Não pensou mais nisso até visitar a namorada, Luísa, na tarde do mesmo dia. Estavam sentados no sofá da sala do apartamento da garota. Ao olhar pela sacada, que estava bem em frente a eles, Antônio viu um ponto preto pousado sobre a antena de um prédio muito distante, e sentiu um calafrio, tendo um espasmo.
‘’ Que foi Antônio? Você me assustou!’’
‘’Um urubu. Ali, naquele prédio, está vendo?’’
‘’Não estou enxergando nada. Onde?’’
‘’Ali! Olha na direção do meu dedo! Viu?’’
‘’Não. ’’
‘’Ah, mas é um urubu, eu tenho certeza!’’
‘’E qual o problema? Eu também não gosto de urubus, mas é só um bicho’’.
‘’Desde a manhã de hoje, tem sempre um animal desses me observando. Isso não é normal’’
‘’Deixa disso, Antônio, não tem nada lá’’.
‘’Luísa, se eu estou falando que eu vi, é porque eu vi’’
‘’Esquece esse urubu’’, disse Luísa, e beijou seus lábios.

Aborrecido, Antônio voltou para casa e resolveu tirar um cochilo.
Dormiu tranqüilamente e, ao acordar, o pôr-do-sol já se aproximava. Ao virar-se na cama, olhou para a janela e teve uma visão que gelou seu coração por um segundo. No parapeito, separado do quarto por apenas um vidro, um urubu se apoiava, vigiando-o com seus olhos negros e vazios.
Antônio começou a gritar com toda a sua força e a tamborilar no vidro, para espantar o animal. Mas este parecia congelado, e não esboçava qualquer reação.
‘’Chega disso!’’, gritou o jovem, apanhando um martelo que ficava pendurado na parede de seu quarto junto com outras ferramentas. ‘’Vou abrir a janela e matar você, seu demônio’’.
Com a mão direita, empunhava o martelo, enquanto que com a esquerda segurava a beirada da janela, preparando-se para abri-la. No exato segundo em que seus músculos se retesavam para executar aquela tarefa tão assustadora, porém, foi interrompido pelo avô. O jovem morava com ele desde os primeiros meses de vida, já que seus pais tinham morrido num acidente de carro quando ainda era uma criança de colo.
‘’Antônio! O que está fazendo?’’
‘’Esses malditos urubus estão em toda parte!’’
‘’Que urubus? Não estou vendo nada’’
Antônio olhou para a janela, e não viu qualquer sinal da ave. Abatido, sentou -se na cama e suspirou.
‘’Não foi nada, Antônio... Deve ter sido só um sonho ruim’’, disse o velho, e saiu do quarto.
‘’Estou ficando louco’’, disse o garoto para si mesmo.
No outro dia, Antônio acordou cedo para ir à universidade. Ao chegar à garagem, ouviu um barulho abafado dentro de seu carro. Andou na ponta dos pés e viu o que temia: Um urubu, caminhando pelo banco traseiro do automóvel, que estava totalmente trancado.
Aquilo foi demais para a já combalida mente do garoto e, gritando, ele correu para a calçada em frente de casa, onde se sentou no chão e passou a praguejar furiosamente.
Ouvindo os gritos de Antônio, um de seus vizinhos saiu de casa e se aproximou do jovem. ‘’Seu’’ Sebastião, homem já grisalho e vivido, sentou-se ao lado do rapaz e tentou conversar com ele.
‘’Mas o que está acontecendo, Antônio?’’
‘’Ah, ‘seu’ Sebastião, se eu te contasse o senhor não acreditaria. Ninguém acredita em mim. ‘’
‘’Que isso, rapaz. Pode abrir o jogo comigo, eu sou seu vizinho desde que você usava fraldas.’’
‘’Está bem. Não tenho mais o que fazer mesmo. ’’
‘’Fale... ’’
‘’Eu tenho visto urubus por toda a parte. A cada vez, eles chegam mais perto de mim. Ninguém acredita, mas eu realmente posso vê-los’’.
Antônio olhou para Sebastião, que permaneceu em silêncio. O homem estava pálido, com os olhos arregalados e o cenho franzido. Parecia estar tomado de pavor.
‘’Rapaz, eu preciso te contar uma coisa. É terrível, mas é para o seu próprio bem’’
‘’Então, conte’’, disse Antônio.
‘’Há quase vinte anos atrás... O seu pai, pouco antes de morrer, começou a falar que via urubus por todas as partes, igual a você. Alguns dias depois, ele sofreu aquele acidente e faleceu’’.
‘’Mas o que eu posso fazer? O que é isso, afinal?’’
‘’Essas coisas não estão no plano físico, Antônio. Vá até uma vidente. Desculpa, mas não sei como te ajudar mais’’.
Antônio seguiu o conselho e foi até uma tal Madame Dora, que atendia em um pequeno apartamento na parte velha da cidade.
O jovem relatou a sua estranha história à vidente, que já preparava uma explicação mentirosa para o fato, uma vez que não tinha qualquer poder extra-sensorial.
Porém, de repente, Madame Dora começou a tremer, e seus olhos se fixaram no jovem.
‘’Saia daqui agora, rapaz!’’
‘’Por que, o que está acontecendo?’’
‘’Eu vejo um sinal de morte sobre você’’
‘’Como? Que sinal?’’
‘’Eu sempre fui uma vigarista, uma mentirosa. Inventava todas as coisas que via, mas hoje eu vejo algo de ruim em você. Saia , por favor, não quero essa coisa aqui!’’
‘’O que você vê? O que eu posso fazer?’’, gritou Antônio, desesperado.
‘’Eu não sei, não posso descrever. Só sei de uma coisa: Preste atenção em tudo e não confie em ninguém. Seu fim está próximo, rapaz’’.
Então, a mulher desmaiou, e Antônio deixou seu consultório.
Ao voltar para casa, notou que havia vários urubus pousados em seu muro. Porém, estava resignado, e não se importava mais.
Chegou à cozinha e viu que seu avô jantava, e que havia um prato separado para ele. Sentou-se à mesa, sem dizer nada, e começou a comer.
Em meio à refeição, sentiu seu estômago queimar como se tivesse sido atingido por ácido, e começou a transpirar e sentir muito calor. Tomado por muita dor, fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, viu que havia quatro urubus em cima da mesa.
‘’O que foi, Antônio?’’, perguntou seu avô.
‘’Os arautos da morte. Eles vieram me buscar, e têm a forma de urubus’’.
‘’Eu sei, eu estou vendo’’, disse o avô.
‘’Como assim? O senhor me disse que não os via’’, resmungou Antônio, já se sentindo tonto e fraco.
‘’ Eu menti sobre esta e muitas coisas. Na verdade, eu não sou seu avô, sou seu bisavô. Eu matei seu avô e seu pai, e agora estou matando você também’’
‘’Mas por que?’’
‘’Eu trabalho para poderes maiores, e preciso de muito tempo para cumprir meus objetivos, tempo que uma vida humana não consegue atingir. Por isso, eu fiz uma barganha com a morte, e ofereço meus descendentes a ela em troca da minha sobrevivência. Seu avô morreu afogado, eu o joguei de um barco e ele jamais foi encontrado; Seu pai morreu em um acidente de carro, eu danifiquei os freios, mas o automóvel ficou tão danificado que ninguém percebeu. E você morrerá envenenado, mas todos pensarão que foi uma congestão. Eu tenho aliados muito poderosos, e por isso meus planos sempre funcionam’’.
Antônio já não tinha forças para falar. Apenas olhava para um urubu pousado em sua barriga, e não se importava mais com nada. Sua cabeça pendeu para frente e ele morreu.
No outro dia, Luísa e o velho estavam no cemitério, sendo os únicos a acompanharem o funeral de Antônio.
Abatida e com os olhos marejados, Luísa olhou para o avô de seu falecido namorado.
‘’Sabe... Ele estava tão distante nos últimos dias. Eu não sei o que aconteceu com ele, mas sinto tantas saudades’’
‘’É, eu sei. Uma pena, não? Tão jovem. ’’
‘’Eu preciso contar uma coisa. Não disse a ninguém, mas não posso esconder mais. Estou grávida do Antônio, já tem algumas semanas. E agora, o que eu faço?’’, e Luísa não conteve o seu choro.
Os olhos do velho brilharam. ‘’Ah, não se preocupe... Nós vamos cuidar dessa criança, vamos cuidar muito bem’’, disse em tom suave.
Uma brisa suave passou pelo cemitério, e o capim farfalhou levemente. Muito distante, quase imperceptível, um urubu planava no imenso azul do céu.

Olho-Vazio

Era uma noite tensa na fazenda, e muito se comentava na senzala, assim como na casa-grande. Salomão, o escravo que havia cometido um impensado ataque a seu próprio senhor algumas horas antes, seria punido pelos feitores e pelo proprietário em pessoa, Álvaro Guimarães dos Reis.
Salomão despertava medo e ódio entre os brancos e admiração entre os negros, porém, não sem uma dose de receio e pavor por parte de seus companheiros de senzala. Era um negro da Guiné, alto e magro. Seus olhos eram escuros e furiosos, o rosto, seco e ossudo como o de uma caveira e ele quase nunca falava, a não ser quando estritamente necessário.
Na verdade, seu nome não era Salomão, sendo que este lhe havia sido dado por um dos feitores da fazenda. Seu passado era desconhecido, e havia boatos de que ele fora um feiticeiro quando na Guiné. Alguns escravos afirmavam tê-lo visto praticando magia negra mesmo no Brasil.
Álvaro Guimarães dos Reis, o senhor de engenho, também era um homem que dividia opiniões. Temido e odiado pelos negros, tinha certo respeito entre os brancos, mas também muitos inimigos. Sua brutalidade para com escravos rebeldes era lendária, e falava-se dele até em terras muito distantes daquela fazenda da Bahia.
Na tarde daquele dia, Álvaro havia sido tomado de desejo por uma negra de quinze anos chamada Laura. Diante da recusa da jovem, tentava violentá-la quando foi parado por Salomão, com um soco que trincou o queixo do senhor de escravos.
Enlouquecido pela dor e pela vergonha, Álvaro ordenou que o escravo fosse acorrentado e trancado em um galpão vazio, anteriormente utilizado para se guardar açúcar. De noite, reuniu alguns feitores de sua confiança e partiram para o galpão, sem revelar seu intuito a ninguém.
Quase todos no engenho acreditavam que Salomão não acordaria vivo no outro dia, ainda que houvesse quem pensasse que seu corpo era fechado.
Sem que ninguém fora do galpão soubesse exatamente o que estava acontecendo, Álvaro executou a sua vingança. Primeiro, o negro foi chicoteado algumas centenas de vezes, ficando com as costas em carne viva. Depois disso, seus braços e pernas foram quebrados por dois feitores, fazendo com que ele berrasse de dor. Não obstante, Álvaro rasgou o lado direito da face do negro com um canivete, vazando o seu olho para fora da órbita.
Finalmente, após tamanho suplício, o senhor se satisfez e mandou enforcar o negro em uma das vigas do recinto. Salomão foi enterrado em uma cova rasa, em meio à mata que circundava a fazenda.
Quarenta anos se passaram, e a propriedade sofreu mudanças. Agora, Álvaro era um velho de setenta anos, e tinha uma esposa e dois filhos jovens nos quais depositava as esperanças de perpetuar o seu legado. Mandou os dois rapazes para estudar em Coimbra, com o fim de que eles pudessem administrar bem a fazenda quando a herdassem.
Após dois anos fora, os jovens voltaram ao engenho a fim de passar lá algumas semanas antes de retornarem aos estudos. Ao descerem da carruagem, trouxeram uma surpresa que gelou o coração de seu pai.
Junto aos rapazes estava um negro, com as mãos e os pés algemados. Era alto, magro e cego do olho direito, ostentava uma profunda cicatriz naquele lado da face e tinha entre trinta e quarenta anos.
Ao vê-lo, Álvaro lembrou-se de Salomão. Como havia se passado muito tempo desde sua morte, já não se recordava mais da aparência do negro, mas teve a impressão de que era idêntico ao outro.
Após cumprimentar seus filhos, interpelou-os sobre aquela presença desagradável.
‘’Por que trouxeram este negro junto com vocês?’’
‘’ No caminho para cá, nós o vimos vagando pela estrada em uma região isolada’’, disse o mais velho. ‘’ Ninguém o conhecia nas fazendas próximas, então trouxemo-lo para o senhor como um presente, pois mesmo não tendo um dos olhos, parece ser ainda forte para o trabalho’’.
Apesar do temor que sentia, Álvaro não quis ser considerado supersticioso, e acabou aceitando aquele presente tão odioso. Porém, procurava não ficar perto do negro, apelidado pelos jovens de Olho-Vazio, e nem lhe dar ordens diretas, evitando sempre a sua presença.
Após algumas semanas na fazenda, os rapazes retornaram a Coimbra. As coisas corriam normalmente, mas Álvaro não se sentia confortável com a presença de Olho-Vazio em suas terras, ainda que este não falasse com ninguém e nunca criasse caso.
Dois meses após a partida dos filhos, o senhor recebeu uma carta escrita pelo reitor da universidade de Coimbra, a qual estava lacrada com um selo que continha o brasão da instituição.
Preocupado, rasgou o envelope e abriu a carta. Ao ler o conteúdo, seu rosto se contorceu de dor e ele se sentou sobre uma poltrona, escondendo a face entre as mãos.
Seus herdeiros estavam mortos, vitimados por uma doença misteriosa que não havia afetado mais ninguém.
Enquanto Álvaro estava recluso em seu quarto, pensando em uma maneira de relatar o ocorrido à mulher, foi interrompido por um de seus capatazes.
‘’ Sinhô, ocê sabe aquele negro cego que os sinhozinhos trouxeram? Acabei de pegá ele fazendo feitiçaria. Dizem que ele tem feito isto desde que chegou aqui’’
Ao ouvir isto, Álvaro sentiu-se furioso. Nunca tinha levado as crenças dos negros muito a sério, mas com a dor que sentia pela morte dos filhos, somada aos receios sobrenaturais que aquele escravo lhe despertava, encontrou nele o seu bode expiatório.
‘’Chicoteiem-no duas mil vezes, não me importa se ele morrer no meio. Agora, saia daqui’’
O capataz se retirou, e Álvaro retornou ao seu sofrimento. Algumas horas depois, contou tudo à mulher, que precisou ser sedada para resistir à tristeza.
No começo da noite, o capataz voltou a falar com seu superior.
‘’Sinhô, nós demos o castigo. Ele ficou com as costa em carne viva, mas nem gritou, e depois levantou e saiu andando’’.
‘’ Certo, então amanhã providenciamos um castigo melhor. Deixe-o acorrentado no velho galpão, e não se atreva a falar comigo de novo esta noite’’.
Cansado e abatido, Álvaro foi dormir junto à mulher, que estava em sono profundo por causa dos remédios. Após passar algumas horas se revirando, ele finalmente adormeceu, e teve um sonho.
Caminhava pelas matas ao redor de sua fazenda quando ouviu as vozes de seus filhos, implorando por ajuda. Ao olhar com atenção, viu os dois rapazes, pálidos e esqueléticos, rastejando em sua direção. Apavorado, começou a andar para trás, sempre olhando para os rostos dos garotos, inexpressivos e sem olhos nas órbitas. Após recuar alguns passos, sentiu que estava pisando sobre terra fofa, como a de uma cova recém-coberta.
Mal este pensamento lhe passou pela cabeça, uma mão agarrou seu tornozelo, e o puxou para baixo. Ao dar conta de si, Álvaro estava dentro da sepultura, encarando o rosto de Olho-Vazio, cuja esclera incolor parecia brilhar. O negro sorriu para ele, e o senhor acordou suado, com o coração batendo forte, e mal conseguindo respirar.
‘’Amanhã’’, pensou, ‘’Vou matar este negro agourento’’. Virou-se para apanhar um copo de água de sua mesa de cabeceira, quando viu com o canto do olho algo se mexendo do outro lado do quarto.
Ao olhar melhor, viu uma silhueta escura se aproximando de sua cama. Forçou a vista e enxergou Olho-Vazio, encarando-o com sua órbita opaca e caminhando em direção a ele a passos silenciosos.
‘’Salomão...’’, gaguejou Álvaro, enquanto o medo lhe tomava novamente. Seu coração, que batia cada vez mais rápido, subitamente parou, causando-lhe uma dor aguda no peito. Seus olhos esbugalharam-se, e finalmente perdeu a respiração, mergulhando na escuridão.
No outro dia, a mulher de Álvaro enlouqueceu, ao saber que além de ter perdido os filhos estava viúva.
Quando os capatazes foram apanhar Olho-Vazio, ele havia sumido do galpão onde fora acorrentado, deixando tudo em perfeito estado. Como havia fugido e onde fora parar, ninguém tinha idéia.
Quanto à propriedade, foi herdada por parentes distantes do antigo senhor, que logo a abandonaram, por terem estranhos sonhos e visões com um negro que não tinha um dos olhos enquanto lá estavam.

Thursday, January 03, 2008

Um facho de luz

Teus lenços ainda estão num canto
Mas você já foi embora
Teu pacote de biscoitos, esquecido, está na geladeira
Mas você já foi embora

Vejo tuas fotos
Mas não posso te tocar

Lembro de teu sorriso espontâneo
Já não posso mais vê-lo

Durante dias eu nadei entre as nuvens
Brinquei, sorri como não o fazia há muito tempo
Agora estou de volta à poeira
Ao vazio
À mediocridade

Mas que importa?
Eu voei, eu fui grande, e você estava a meu lado
Você viu o meu melhor
Foi o meu melhor

Choro a partida de dias tão bonitos
Mas uma esperança me aquece por dentro
Uma voz me diz ''Que isto seja o começo''

E eu procuro aceitá-la
Acreditar nela
Assim a vida continua

E eu me apoio
Com as forças que tenho
Tropeçando, rastejando

Mas prosseguindo.

Sunday, December 16, 2007

Quatro pessoas, um entardecer ,uma canção

Fim de tarde de uma sexta-feira, o céu e tudo o mais estão laranja escuro. Um homem de terno, enfurnado em um carro no meio de um engarrafamento, sua por baixo do pano grosso de suas roupas. Pensamentos invadem-no e flutuam por dentro de sua cabeça. Ele olha para o lado, vê pessoas voltando para casa de uma caminhada, conversando, e tenta se abstrair de seus problemas. Que lhe importa que esteja ficando velho? Ele ainda não o é...

Um rádio começa a tocar Eye in the Sky, com sua batida oitentista:

Don't think sorry is easily said
Don't try turning tables instead
You've taken lots of chances before
But I'm not gonna give anymore
Don't ask me
That's how it goes
Cause part of me knows what you're thinking

A uma quadra dali, um menino está em frente ao portão de sua escola, chutando pedras. A proximidade da noite o incomoda. Onde está seu pai? Um velho zelador o faz companhia. Não é a primeira vez que isso acontece. Ele terá que ligar do orelhão para a mãe. Quase todas as sextas, que é o dia em que seu pai pode vê-lo, ele se atrasa ou falta ao compromisso.

O radinho prossegue:

Don't say words you're gonna regret
Don't let the fire rush to your head
I've heard the accusation before
And I ain't gonna take any more
Believe me
The sun in your eyes
Made some of the lies worth believing.

O homem se mexe, suado, sobre seu colchão. Praga, tinha que ter buscado o filho. Olha a janela, já está tudo escuro. Vai continuar dormindo, a mãe já deve tê-lo pego e o levado para a casa dela. De novo. Ele se arrepende um pouco, e volta a se deitar.

Eye in the Sky chega ao refrão:

I am the eye in the sky
Looking at you
I can read your mind
I am the maker of rules
Dealing with fools
I can cheat you blind
And I dont need to see any more
To know that
I can read your mind, I can read your mind

A mulher chega em casa com seu filho pequeno. Só eles dois, naquele pequeno lar iluminado em meio à escuridão do fim do dia. Ela sente vontade de chorar, mas se segura.Entram na casa e ela vai para a cozinha fazer o jantar.

O rádio prossegue, prestes a finalizar:

Don't leave false illusions behind
Don't cry cause I ain't changing my mind
So find another fool like before
Cause I ain't gonna live anymore believing
Some of the lies while all of the signs are deceiving.

Mais alguns compassos, e a música termina, assim como o dia. As pessoas também terminam, mas nascerão de novo amanhã.

Sunday, December 09, 2007

Casas vazias

Eu estou andando pela rua. É um dia estranho. A cidade está vazia, o céu está nublado, as árvores estão secas.
Passo em frente a casas abandonadas e cinzentas. Vejo uma delas com o portão aberto, e resolvo entrar. Por que não?
Passo pelo portão, experimento a porta e me surpreendo ao ver que está aberta. Entro na casa, e vejo que não há nada nem ninguém lá, mas tudo está em perfeitas condições. Não há móveis, mas o assoalho e as paredes estão como no dia em que foram feitos.
Sento-me em meio a sala, as pernas cruzadas sobre o assoalho de madeira. Imagino que a casa é minha, e que há crianças correndo, mobília, risadas, música.
Por um momento, eu quase acredito que poderia ter sido assim, eu quase enxergo e toco aquela solidez, aquela estabilidade, em meio à escuridão da tarde nublada.
Mas um trovão desperta-me de meus devaneios, e resolvo sair da casa e retornar à rua, após constatar que eu não posso fazer nada para ressuscitá-la.
Ao deixar a casa, deparo-me com um cachorro totalmente negro, parecido com um dobermann. Seus olhos vermelhos estão queimando de fúria, suas costas estão eriçadas e prontas para o ataque.
Não desejo provocar o cão, então me esgueiro de lado com as costas na parede, buscando chegar ao portão. O dobermann segue-me, rosnando baixo.
Ao passar pelo portão, desato a correr. O cachorro maldito sai para a rua e vai atrás de mim.
Corro utilizando toda a força de minhas pernas, mas o cão é melhor que eu. Logo estou exausto. Meus músculos parecem estar à beira da explosão, meu pulmão arde como se estivesse queimando, minha vista torna-se turva.
O dobermann brinca comigo, só atacará no momento em que eu cair. Talvez se eu lutasse? Será que eu tenho alguma chance?
Não, prefiro não arriscar. A rua é infinita e vazia. É como uma rodovia. Onde estão as casas? Por que não tem ninguém aqui?
Estou à beira da inconsciência, minha corrida se reduz a um trote ridículo. O cachorro morde meus calcanhares, e depois se afasta, apenas para voltar mais uma vez.
Vejo que a estrada está chegando ao fim, limitada por um desfiladeiro. Não há alternativa, vou morrer.
Porém, no campo ao lado da estrada, vejo uma árvore. Em um último esforço, no qual os músculos de minhas pernas se estiram quase até arrebentar, consigo acelerar o meu passo e chegar até aquela árvore.
Escalo-a o mais rapidamente possível, sem olhar para baixo. Após chegar ao topo, vomito por causa do esforço, e desmaio sobre um galho grosso.
Algumas horas depois, perto do pôr-do-sol, desperto. O dia ainda está nublado, agora em um tom mais escuro. Por um pequeno buraco entre as nuvens, passam os raios dourados dos últimos minutos de luz. Um vento fresco agita o mato dos campos ao redor da árvore.
Embaixo, o dobermann espera, em pé. Grito imprecações, atinjo-o com laranjas apanhadas da árvore, mas ele não se move. Tudo bem, vou dormir, amanhã de manhã ele terá ido embora.
No outro dia, porém, o dobermann está lá, em pé, esperando que eu desça. Resigno-me. Vou esperar mais um dia.
Durante a tarde, noto que há algumas tábuas espalhadas pela árvore. Provavelmente, havia aqui alguma casa montada por crianças, e que foi destruída por um vendaval, por adultos ou mesmo pelo tempo.
Apanho as tábuas e passo o meu tempo montando uma pequena casa para mim. Incrivelmente, consigo erguer uma pequena edificação até confortável. Lá embaixo, o cão espera.
Vem a noite, e tenho fome e sede. Apanho algumas laranjas e descasco-as com lascas da própria árvore, em um processo muito falho e penoso.
Consigo alimentar-me e hidratar-me, mesmo que insuficientemente.
Passam-se mais dois dias, o maldito demônio ainda está lá embaixo. Começo a conformar-me com a idéia de nunca deixar a árvore.
Com algumas cascas de laranja, construo bonequinhos para me fazer companhia. Dou-lhes nomes, profissões, genealogias, personalidades. Crio famílias, cultura e História.
As semanas vão se passando, o objetivo de minha vida passa a ser criar existências para os bonecos de casca de laranja.
Às vezes, penso que eu deveria descer e enfrentar o dobermann. Mas sou um inútil, não conseguiria fazê-lo. Não seria, porém, mais honrado morrer lutando do que deixar as laranjas acabarem e perecer pela fome e pela sede?
Por quanto tempo conseguirei sobreviver com as laranjas?
Tento confortar-me, esquecer das perguntas, para as quais não tenho respostas.
De um jeito ou de outro, isto vai acabar. Tente acreditar nisto. Nada dura para sempre, o tempo de hoje é só o passado do futuro.
Esqueça isto.Esqueça o dobermann.Foque-se nas laranjas. Laranjas medievais, pós-modernas, laranjas pop.
Laranjas...

Monday, November 26, 2007

Andréa Rios

Era noite de sábado, quente e abafada. Andréa olhava-se no espelho e penteava o cabelo. Quando achou que estava bom, guardou a escova e saiu do banheiro, indo até a sala, onde seus pais assistiam televisão.
‘’Mãe, pai, eu ‘tou saindo. Depois do evento eu vou pra casa da Patrícia. Volto aqui amanhã de tarde, tá bom?’’
‘’Tudo bem filha’’, disse a mãe. ‘’Divirta-se, e tome cuidado, viu?’’
‘’Tchau, mãe. Tchau, pai’’.
‘’Tchau’’, murmurou o senhor Rios, recostado na poltrona e inebriado pelo jornal que passava na TV.

Desde o meio-dia, Carmo estava trabalhando na fiação elétrica. Já estava cansado, transpirava e fedia. Mas para ele, o fedor era imperceptível, e nem se dava conta disso.
Olhou para além do palco, onde trabalhava, e viu as pessoas entrando no salão. Sentiu um ódio crescente ao vê-los chegando, todos arrumados e sorridentes.
‘’Bando de playboy metido. Eu fico aqui trabalhando do meio-dia às oito, ganhando um salário de merda pra vocês dançarem, né?’’.
Andréa Rios conversava com suas amigas, em um canto do salão, que estava cheio. Dentro em pouco, o encontro de danças e atividade física da universidade ia começar.
Carmo olhava para as mulheres que chegavam, a maior parte estudantes de educação física. Ainda trabalhava nas caixas de som, mas de quando em quando levantava os olhos discretamente. Sua testa pingava suor.
‘’Dondocas vagabundas. Eu tenho que ficar com aquelas barangas do meu bairro, porque uma mulher desse tipo não vai dar bola pra mim, vai? Mas antes de ir com os playboy, elas nem pensam duas vezes. Ah, se eu pegasse uma dessas... eu mostrava o que era macho de verdade. Elas se acham as bonitonas, só porque são ricas. Nem olham pra mim. Ah, se eu pegasse uma mulher dessa...minha vida ‘tava feita...mulher dessas não tem na minha área’’.
Terminou de arrumar as caixas de som, e avisou o pessoal da organização do evento. Logo estava saindo do palco, para dar lugar a um fortão sorridente e meio abobalhado, que assumiu seu lugar atrás do microfone.
‘’Boa noite, pessoal’’, disse o fortão. ‘’Boa noite’’, responderam algumas vozes em coro. ‘’Estamos começando o nosso terceiro encontro de dança e atividade física, e vamos inaugurar o agito com uma aula de aeróbica. Todo mundo pronto? Então, solta o som, deejay’’.
O ar foi invadido por uma batida eletrônica repetitiva, e as pessoas começaram a balançar os corpos. Em meio à massa hipnotizada, dançavam Andréa Rios e suas amigas.
A algumas dezenas de metros dali, em um bar improvisado no canto do ginásio, Carmo engolia uma dose de cachaça e observava a multidão dançando.
‘’Eu podia ir dançar também. Nada! Eles iam rir de mim...gente nojenta. Ah, mas eu vou mostrar, ah, se eu vou. Um dia eu assalto um mauricinho desses, roubo o tênis dele e encho de porrada. É assim memo que tem que ser, porque eu sou louco! Eu sou muito louco! Ainda vou ter um tênis desse, um celular de rico...todo mundo vai ver’’
Acabou a sessão de aeróbica, e Andréa Rios tinha o rosto suado. Seu cabelo colava-se dos lados da face. ‘’Nossa, muito legal, né? O que será que eles vão fazer depois’’, perguntou Patrícia. ‘’Não sei, mas espero continuar no pique’’, respondeu Andréa.
Deu-se um pequeno intervalo no evento, e os participantes dispersaram-se no salão. Alguns separaram-se em pequenos grupos e conversavam; outros foram ao bar tomar alguns drinques alcoólicos; houve os que comprassem bebidas de um ambulante malandro que tinha conseguido entrar no local, e outros ainda que foram ao banheiro.
Entre os que foram ao bar, um rapaz tentava erguer uma menina no colo. Ela gritava, em tom de falsete, entrecortado de risadas. ‘’Não! Pára, pára!’’.
Carmo rosnava pelo canto da boca como um cão, roendo-se de inveja.
O evento recomeçou, e Carmo abriu uma segunda garrafa de cachaça.
Após o terceiro copo, sentiu vontade de urinar. Pediu para o barman guardar o copo e a bebida por um tempo, pois ia ao banheiro, e saiu.
Andréa Rios dançava, chacoalhando os cabelos. Súbito, sua vista turvou um pouco, e viu pontos roxos. ‘’Páti, não tou me sentindo bem’’.
‘’ Que foi, Andréa?’’
‘’Acho que é o calor, não sei...’’
Andréa tinha o rosto vermelho como um pimentão, e estava zonza.
‘’ Toma uma água, lava o rosto...depois você volta’’
‘’É...eu tou indo, já volto.’’
Saindo do banheiro, que era distante da pista de dança, em um canto escurecido do ginásio, Carmo viu Andréa entrando no sanitário feminino. Mulherão.
Cabelo castanho, liso, corpo bem torneado.Sozinha.
‘’Arre, Carmo, é a sua chance...Espera a potranca sair que você pega ela de jeito’’.

Andréa saiu do banheiro, sentindo-se mais refrescada, e encontrou Carmo do lado de fora.
‘’Moça’’, disse ele com um jeito manso de falar. ‘’Será que você pode me dar uma força?’’
‘’ Depende...que que aconteceu?’’
‘’É que eu trabalho na manutenção, sabe...e eu acabei perdendo a minha carteira. Você não pode me ajudar a dar uma procurada? Eu tenho dois filho pra criar, moça...’’
Andréa tinha bom coração.
‘’Claro, eu ajudo o senhor...Onde foi que você perdeu?’’
‘’Ali, naquele lugar ali...’’ disse Carmo, apontando para a porta de um depósito escuro.
Andréa entrou no depósito, e acendeu a luz. O lugar era grande, e estava cheio de bolas dos mais diversos esportes, redes, bambolês e outros acessórios.
‘’Aí, tá vendo, eu não consigo encontrar...’’, disse Carmo.
‘’Calma que eu tou dando uma olhada’’, disse Andréa.
Ao passar os olhos pelo chão, viu em um canto uma carteira marrom, de má qualidade.
‘’Ali, peraí que eu pego pro senhor!’’
Andréa se abaixou, e subitamente sua vista desapareceu com um flash de câmera fotográfica, e então tudo era roxo e depois escuro.
‘’E agora, o que eu faço?’’, pensou Carmo, ainda segurando a chave-inglesa com a qual desferira o violento golpe na nuca da estudante.
‘’Será que ela tá viva? Acho melhor terminar o que eu comecei’’
Apertou o pescoço de Andréa com muita força, durante vários minutos, até ter certeza de que ela estava morta.
Após matar Andréa, resolveu não fazer mais nada. Na verdade, nem tinha um plano, e nem sabia bem o que queria fazer quando a viu entrando no banheiro.
Agora, tudo o que pensava era em se livrar do que havia feito.
‘’Relaxa, Carmo...vou tomar mais algumas, fingir que tou normal e depois vou zarpar daqui’’.
Apanhou a carteira, colocou no bolso e saiu.
Depois de um tempo, Patrícia começou a sentir falta de Andréa, e ficou preocupada. Foi ao banheiro e não havia sinal da amiga.
‘’Talvez ela tenha ido para casa’’.
Tentou ligar no celular de Andréa, mas estava desligado.
‘’Coitada, deve ter ido para casa, mas vou ligar para me certificar’’.
Andréa não estava em casa, e o telefonema de Patrícia deixou a família Rios apreensiva. No entanto, não poderiam dar queixa de desaparecimento antes de 24 horas, e não haviam se passado nem duas horas.
Patrícia reuniu alguns colegas e fizeram uma busca pela universidade, presumindo que Andréa não estaria despercebida em um lugar tão movimentado como o ginásio. Não a encontraram.
O casal Rios não dormiu naquela noite, e teve um domingo muito ruim. Finalmente, veio a noite e eles puderam dar queixa do desaparecimento da filha.
Deste ponto para diante, a agonia não iria durar muito, pois na manhã de segunda-feira um zelador encontrou o corpo da garota no depósito do ginásio.
O caso revoltou a cidade, e teve repercussão em veículos midiáticos de várias partes do país.
Carmo, o único que sabia o que tinha acontecido, manteve-se calado.
As semanas se passavam, e a polícia não conseguia descobrir nada sobre a morte de Andréa.
Da capa dos jornais, a estudante foi para o miolo, e as matérias sobre ela foram diminuindo, até não passarem de ínfimas notas.
A cidade e o país encontraram outros assuntos para se preocupar, inclusive Carmo. Mas os pais de Andréa Rios, ah, esses jamais esqueceriam.
Passaram-se alguns anos e Carmo foi morto por um amigo em uma briga de bar, causada por um jogo de baralho.
Não foi um caso de destaque nem mesmo para sua família, que o considerava um traste.
Hoje, o túmulo de Andréa Rios está em um cemitério, ladeado por bonitos campos verdes. A maioria das pessoas que passa em frente dele não se lembra exatamente do caso, apesar de que alguns poucos mais informados ainda têm algumas faíscas de memória.
Mesmo assim, não são incomuns os que deixam de notar a pouca idade da morta, e a beleza de seu rosto, deixando-os com um sentimento de pesar e a formular hipóteses sobre o que causou sua morte.
É freqüente ver flores colocadas por desconhecidos no túmulo de Andréa, ladeando o seu rosto de olhar tranqüilo.
O túmulo de Carmo, mal-cuidado, já não chama tanta atenção. Não há flores, nem secas, não há velas, nem sequer fotos. No máximo, recebe uma limpeza descuidada de algum zelador distraído, pensando no que a mulher está preparando para a janta desta noite, e se perguntando porque as sextas-feiras levam tanto tempo para acabar.

Saturday, November 24, 2007

O Tigre

Alberto era um homem de 70 anos, forte para a sua idade, mas dono de um olhar levemente triste.
Lia o jornal todos os dias, e ao ver manchetes como ‘’Mulher é violentada e assassinada’’, ‘’Tiroteio mata 3’’, ‘’Esquema de corrupção desvia dois milhões’’, sentia uma certa indignação, mas era uma indignação conformista. Ele não podia fazer nada, era só um velho. Em seu tempo, as coisas não eram assim, pelo menos não do jeito que ele se lembrava.
Vivia sozinho, desde que a mulher morrera havia cinco anos. Seus filhos e netos o visitavam de vez em quando, mas era uma existência essencialmente solitária.
Certa manhã, Alberto estava precisando de dinheiro, e resolveu ir ao banco. Foi caminhando, pois era perto de sua casa.
Andava bem para um velho. A postura era quase tão ereta quanto a de um jovem, os passos eram firmes e precisos, o olhar, apesar de nostálgico, mirava o horizonte.
Entrou no banco e foi a um caixa eletrônico. Depois, guardou o dinheiro em sua carteira e a colocou no bolso, saindo do banco e entrando no meio da massa apressada que andava para lá e para cá.
Enquanto percorria a quadra em frente ao banco, notou que era seguido por um homem, e percebeu que era um bandido. Apertou o passo, sempre olhando com o rabo do olho para trás.
No entanto, foi traído pela sua atenção, pois enquanto se focava no homem de trás, veio outro bandido e lhe deu um esbarrão pela frente, apanhando sua carteira. Alberto mesmo desequilibrado, tentou agarrar o segundo homem, mas não obteve sucesso, pois ele era gordo, grande e forte.
Apesar disso, o velho não desistia, e segurava o bandido com tenacidade, enquanto ele tentava se afastar, arrastando-o pelo braço.
Por fim, o bandido se cansou e deu um murro nas costelas de Alberto. O idoso, frágil e cansado, não resistiu àquele golpe, vindo de um homem com a força de um gorila, e caiu no chão.
Os batedores de carteira saíram correndo, enquanto a multidão olhava, com medo de intervir.
Só quando os bandidos haviam sumido ao longe, as pessoas se aproximaram e foram ajudar Alberto, que estava sentado no chão, com um olhar desolado.
‘’O senhor está bem?’’, perguntou uma mulher de voz neurótica.
‘’Eu estou’’, disse Alberto, cuja mente estava distante. A voz da mulher havia soado como um eco vazio. À sua frente ele só via uma névoa branca, um nada.
‘’Acho melhor você ir para o hospital’’, alguém disse. A multidão ergueu Alberto, e levaram-no apoiado pelos ombros até um posto de saúde próximo.
Não que ele não pudesse ter se levantado com suas próprias pernas, pois fisicamente estava bem.
Mas a mente...a mente sofria de uma espécie de transe, uma inércia que amolecia o corpo.
No posto de saúde, foi examinado por um médico.
‘’O senhor está bem, seu Alberto. Por sorte, você é forte para a sua idade, mas nada de mais aventuras como estas, certo?’’
‘’Claro’’, balbuciou o velho.
Na tarde daquele dia, Alberto estava sentado na poltrona da sua sala de estar, ainda sob efeito do ocorrido daquela manhã.
Ele fumava um cachimbo, tentando relaxar de pernas cruzadas; As fotos da cômoda o olhavam. Alberto jovem; sua mulher; seus filhos; os filhos de seus filhos. Fotos preto-e-branco, fotos coloridas.
Um pequeno relógio de madeira contava os segundos. Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
‘’Engraçado…um minuto atrás eu era tão jovem, hoje sou só um velho.’’
A tristeza era profunda. A tristeza da fraqueza, do tempo, da morte. Da desonra de não poder se defender.
Quando jovem, ele havia praticado vários esportes, havia feito o serviço militar. Caso tivesse sido atacado há 50 anos, teria reagido e nocauteado o gorila, tinha certeza.
Mas de que adiantava pensar nisso? Já não estava mais naquele tempo, pertencia a um mundo morto.
Apalpou as costelas, que ainda estavam doendo. Tinha um grande hematoma e estava cansado.
Alberto deitou-se em sua cama, mas não conseguia adormecer. Rolava inquietamente, e uma idéia estranha começava a tomar corpo em sua cabeça.
Seus membros formigavam de energia, sua cabeça voava velozmente através de pensamentos transparentes e límpidos, e subitamente ele enxergou claramente o que tinha que fazer, e finalmente adormeceu.
De manhã, telefonou para seu velho amigo Pereira.
‘’Pereira, aqui é o Alberto...’’
‘’Fala, Alberto, quanto tempo, hein?’’
‘’Pois é...tudo bem com você?’’
‘’Tudo ótimo, e você?’’
‘’Também...Pereira, eu queria te pedir um favor.’’
‘’Fala, grande!’’
‘’Você ainda tem a loja de armas?’’
‘’Sim, graças a deus, por que?’’
‘’Eu tava precisando de um revólver...sabe como é, ando muito desocupado e queria voltar a praticar tiro’’
‘’ Essa me pegou de surpresa...você ainda tem a licença na validade?’’
‘’Não, mas não é coisa séria. Só quero estourar umas garrafas, sabe?’’
‘’Bom, se é assim...vem aqui hoje à tarde que a gente conversa melhor’’.

Alberto encontrou-se com Pereira naquela tarde, e isso serviu para elevar o seu astral. Os dois lembraram-se dos tempos de juventude, das risadas e das amarguras que tinham presenciado juntos. A amizade amoleceu Pereira, e ele vendeu a Alberto a arma que este desejava, mesmo que isto lhe parecesse estranho.
Ao chegar em casa, Alberto apanhou a pistola e a manuseou. Que arma! Um pente de 15 tiros, um corpo preto e reluzente. Precisava praticar um pouco de tiro.
Apanhou alguns cascos velhos de cerveja e colocou no porta-malas de seu carro, e então viajou até um bosque nos arredores da cidade.
Enfileirou as garrafas e tomou distância. Incrivelmente, seu corpo ainda conhecia a postura de tiro. Segurou a arma com as duas mãos, fazendo o possível para obter firmeza.
Olhou para a primeira garrafa e traçou uma linha imaginária de seus olhos até ela. Respirou fundo e relaxou, e então apertou o gatilho. A garrafa estourou.
‘’Maravilha, oito anos de tiro esportivo não foram em vão.’’
Passou a tarde treinando, e impressionou-se com seu desempenho. Estava pronto, iria realizar seu plano.
No outro dia, Alberto colocou a arma na cintura, vestiu um casaco preto e fechou-o. Foi caminhando até o local onde havia sido assaltado.
Nada, os dois canalhas não estavam lá. Andou pelo quarteirão, sempre atento. Finalmente, viu um ponto de táxi em uma esquina, onde alguns homens conversavam.
Em meio a eles, os dois bandidos que o haviam agredido. Sentiu-se nervoso. Iria mesmo fazer aquilo?
Seu coração batia velozmente, parecia que ia explodir; Sua cabeça rodava, e pontos roxos dançavam em sua vista; As mãos, trêmulas, apalpavam a arma por cima do casaco; Uma gota grossa de suor escorria pelo braço.
‘’ E se eu errar os tiros? E se um deles estiver armado? E se a polícia me pegar depois?’’.
Finalmente, colocou a mão no cabo da arma, e sentiu-se decidido. Sabia exatamente o que fazer: atiraria três vezes no gordo, e então o cúmplice iria correr. Acertaria o segundo, e então sairia discretamente, jogando a arma em um bueiro.
Sacou a arma discretamente, em meio às pessoas apressadas que nada percebiam. Quando ia levantar o braço e apontar, porém, um pensamento lhe veio à cabeça: ‘’Era só uma carteira...Deixa disso, era só uma carteira e um pouco de dinheiro. Vale a pena fazer isso já velho, por causa de uma carteira?’’
Abaixou o braço. A vida dos bandidos estava em suas mãos. Isso não os deixava quites? Isso não o fazia melhor que eles?
Então, Alberto foi para casa, telefonou para a polícia e denunciou os dois batedores de carteira.
Que lhe importava se fossem presos ou não? O que importa é que ele estava em paz consigo mesmo.
Era um velho tigre, mas ainda tinha garras.