Saturday, November 24, 2007

O Tigre

Alberto era um homem de 70 anos, forte para a sua idade, mas dono de um olhar levemente triste.
Lia o jornal todos os dias, e ao ver manchetes como ‘’Mulher é violentada e assassinada’’, ‘’Tiroteio mata 3’’, ‘’Esquema de corrupção desvia dois milhões’’, sentia uma certa indignação, mas era uma indignação conformista. Ele não podia fazer nada, era só um velho. Em seu tempo, as coisas não eram assim, pelo menos não do jeito que ele se lembrava.
Vivia sozinho, desde que a mulher morrera havia cinco anos. Seus filhos e netos o visitavam de vez em quando, mas era uma existência essencialmente solitária.
Certa manhã, Alberto estava precisando de dinheiro, e resolveu ir ao banco. Foi caminhando, pois era perto de sua casa.
Andava bem para um velho. A postura era quase tão ereta quanto a de um jovem, os passos eram firmes e precisos, o olhar, apesar de nostálgico, mirava o horizonte.
Entrou no banco e foi a um caixa eletrônico. Depois, guardou o dinheiro em sua carteira e a colocou no bolso, saindo do banco e entrando no meio da massa apressada que andava para lá e para cá.
Enquanto percorria a quadra em frente ao banco, notou que era seguido por um homem, e percebeu que era um bandido. Apertou o passo, sempre olhando com o rabo do olho para trás.
No entanto, foi traído pela sua atenção, pois enquanto se focava no homem de trás, veio outro bandido e lhe deu um esbarrão pela frente, apanhando sua carteira. Alberto mesmo desequilibrado, tentou agarrar o segundo homem, mas não obteve sucesso, pois ele era gordo, grande e forte.
Apesar disso, o velho não desistia, e segurava o bandido com tenacidade, enquanto ele tentava se afastar, arrastando-o pelo braço.
Por fim, o bandido se cansou e deu um murro nas costelas de Alberto. O idoso, frágil e cansado, não resistiu àquele golpe, vindo de um homem com a força de um gorila, e caiu no chão.
Os batedores de carteira saíram correndo, enquanto a multidão olhava, com medo de intervir.
Só quando os bandidos haviam sumido ao longe, as pessoas se aproximaram e foram ajudar Alberto, que estava sentado no chão, com um olhar desolado.
‘’O senhor está bem?’’, perguntou uma mulher de voz neurótica.
‘’Eu estou’’, disse Alberto, cuja mente estava distante. A voz da mulher havia soado como um eco vazio. À sua frente ele só via uma névoa branca, um nada.
‘’Acho melhor você ir para o hospital’’, alguém disse. A multidão ergueu Alberto, e levaram-no apoiado pelos ombros até um posto de saúde próximo.
Não que ele não pudesse ter se levantado com suas próprias pernas, pois fisicamente estava bem.
Mas a mente...a mente sofria de uma espécie de transe, uma inércia que amolecia o corpo.
No posto de saúde, foi examinado por um médico.
‘’O senhor está bem, seu Alberto. Por sorte, você é forte para a sua idade, mas nada de mais aventuras como estas, certo?’’
‘’Claro’’, balbuciou o velho.
Na tarde daquele dia, Alberto estava sentado na poltrona da sua sala de estar, ainda sob efeito do ocorrido daquela manhã.
Ele fumava um cachimbo, tentando relaxar de pernas cruzadas; As fotos da cômoda o olhavam. Alberto jovem; sua mulher; seus filhos; os filhos de seus filhos. Fotos preto-e-branco, fotos coloridas.
Um pequeno relógio de madeira contava os segundos. Tic-tac. Tic-tac. Tic-tac.
‘’Engraçado…um minuto atrás eu era tão jovem, hoje sou só um velho.’’
A tristeza era profunda. A tristeza da fraqueza, do tempo, da morte. Da desonra de não poder se defender.
Quando jovem, ele havia praticado vários esportes, havia feito o serviço militar. Caso tivesse sido atacado há 50 anos, teria reagido e nocauteado o gorila, tinha certeza.
Mas de que adiantava pensar nisso? Já não estava mais naquele tempo, pertencia a um mundo morto.
Apalpou as costelas, que ainda estavam doendo. Tinha um grande hematoma e estava cansado.
Alberto deitou-se em sua cama, mas não conseguia adormecer. Rolava inquietamente, e uma idéia estranha começava a tomar corpo em sua cabeça.
Seus membros formigavam de energia, sua cabeça voava velozmente através de pensamentos transparentes e límpidos, e subitamente ele enxergou claramente o que tinha que fazer, e finalmente adormeceu.
De manhã, telefonou para seu velho amigo Pereira.
‘’Pereira, aqui é o Alberto...’’
‘’Fala, Alberto, quanto tempo, hein?’’
‘’Pois é...tudo bem com você?’’
‘’Tudo ótimo, e você?’’
‘’Também...Pereira, eu queria te pedir um favor.’’
‘’Fala, grande!’’
‘’Você ainda tem a loja de armas?’’
‘’Sim, graças a deus, por que?’’
‘’Eu tava precisando de um revólver...sabe como é, ando muito desocupado e queria voltar a praticar tiro’’
‘’ Essa me pegou de surpresa...você ainda tem a licença na validade?’’
‘’Não, mas não é coisa séria. Só quero estourar umas garrafas, sabe?’’
‘’Bom, se é assim...vem aqui hoje à tarde que a gente conversa melhor’’.

Alberto encontrou-se com Pereira naquela tarde, e isso serviu para elevar o seu astral. Os dois lembraram-se dos tempos de juventude, das risadas e das amarguras que tinham presenciado juntos. A amizade amoleceu Pereira, e ele vendeu a Alberto a arma que este desejava, mesmo que isto lhe parecesse estranho.
Ao chegar em casa, Alberto apanhou a pistola e a manuseou. Que arma! Um pente de 15 tiros, um corpo preto e reluzente. Precisava praticar um pouco de tiro.
Apanhou alguns cascos velhos de cerveja e colocou no porta-malas de seu carro, e então viajou até um bosque nos arredores da cidade.
Enfileirou as garrafas e tomou distância. Incrivelmente, seu corpo ainda conhecia a postura de tiro. Segurou a arma com as duas mãos, fazendo o possível para obter firmeza.
Olhou para a primeira garrafa e traçou uma linha imaginária de seus olhos até ela. Respirou fundo e relaxou, e então apertou o gatilho. A garrafa estourou.
‘’Maravilha, oito anos de tiro esportivo não foram em vão.’’
Passou a tarde treinando, e impressionou-se com seu desempenho. Estava pronto, iria realizar seu plano.
No outro dia, Alberto colocou a arma na cintura, vestiu um casaco preto e fechou-o. Foi caminhando até o local onde havia sido assaltado.
Nada, os dois canalhas não estavam lá. Andou pelo quarteirão, sempre atento. Finalmente, viu um ponto de táxi em uma esquina, onde alguns homens conversavam.
Em meio a eles, os dois bandidos que o haviam agredido. Sentiu-se nervoso. Iria mesmo fazer aquilo?
Seu coração batia velozmente, parecia que ia explodir; Sua cabeça rodava, e pontos roxos dançavam em sua vista; As mãos, trêmulas, apalpavam a arma por cima do casaco; Uma gota grossa de suor escorria pelo braço.
‘’ E se eu errar os tiros? E se um deles estiver armado? E se a polícia me pegar depois?’’.
Finalmente, colocou a mão no cabo da arma, e sentiu-se decidido. Sabia exatamente o que fazer: atiraria três vezes no gordo, e então o cúmplice iria correr. Acertaria o segundo, e então sairia discretamente, jogando a arma em um bueiro.
Sacou a arma discretamente, em meio às pessoas apressadas que nada percebiam. Quando ia levantar o braço e apontar, porém, um pensamento lhe veio à cabeça: ‘’Era só uma carteira...Deixa disso, era só uma carteira e um pouco de dinheiro. Vale a pena fazer isso já velho, por causa de uma carteira?’’
Abaixou o braço. A vida dos bandidos estava em suas mãos. Isso não os deixava quites? Isso não o fazia melhor que eles?
Então, Alberto foi para casa, telefonou para a polícia e denunciou os dois batedores de carteira.
Que lhe importava se fossem presos ou não? O que importa é que ele estava em paz consigo mesmo.
Era um velho tigre, mas ainda tinha garras.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home