Wednesday, June 06, 2007

O grande ator

Romano era um ator medíocre. Nunca fazia cagadas, por assim dizer, mas também não era um gênio.
Vivia na Itália, como sugere seu nome, e trabalhava geralmente em filmes B.
Mas certo dia, que ocorreu lá pelos anos sessenta ou setenta, ele foi escalado para trabalhar com um diretor de renome.
Sabe como são essas coisas. Mesmo os diretores de renome filmam com atores medíocres, ou até mesmo ruins. Por isso, inclusive, que são diretores de renome. Fazer sucesso com um time de estrelas, até você faz.
Então, esse diretor, Fredo Bianchi, convidou o Romano para fazer um papel de coadjuvante, num filme chamado ''Miséria''.
O ator representaria um mendigo, que contracenava com um parceiro realmente importante, a estrela do filme, Cesare Veroni.
Bianchi era um cineasta muito perfeccionista. Exigia muito de si mesmo, e também de seus colaboradores, mesmo os mais indiretos.
Sabia que Romano era um medíocre, mas acabou vendo um potencial imenso no ator, que apenas não sabia como utilizá-lo.
Assim, quando Romano contracenava com Cesare, Bianchi era extremamente detalhista, e corrigia qualquer erro do ator, por mínimo que fosse.

-Romano, fala com mas energia!
-Não, nem tanta energia assim!
-Isso não é mendigo nem aqui e nem na China!
- Quase bom, mas você tem que falar depois da deixa do Cesare!

Romano se esforçava. Era o típico medíocre persistente. Mas sentia que faltava algo, e isto o incomodava.
Não por causa da opinião do diretor, mas sim pela sua própria autocrítica. Ele queria fazer o seu melhor, e havia anos que tentava sem sucesso.
Assim, mergulhou de cabeça no papel de mendigo. Vestia-se como um indigente quando estava em casa, praticava os gestos olhando-se no espelho e conversava com mendigos na rua, quando não estava trabalhando.
No entanto, todo este esforço não estava dando resultado. Continuava apagado ainda, perto do que sentia que poderia ser.
Era uma sexta-feira. No sábado, a cena mais importante do personagem de Romano seria gravada. Ele não estava contente, Cesare não estava contente e Bianchi não estava contente.
Diante da pressão, resolveu tomar uma cervejinha para se acalmar. Acabou exagerando na dose, e dormiu na rua.
No sábado de manhã, ninguém sabia onde ele estava. Fredo saiu pessoalmente para procurá-lo. Procura daqui, procura de lá, em certa praça encontra o ator, todo descomposto.

-Ora, mas pelo menos já está com o figurino, né, Romano?
- Vê se não é o bacana da TV! Me dá um trocadinho?
-Isso, Romano! É isso que eu quero! Vamos já pro estúdio!

Chegando lá, gravaram a cena. Romano atuou perfeitamente. Parecia estar possuído pelo espírito de um mendigo, se é que mendigos baixam em alguém.
Na segunda-feira, o ator estava já com duas horas de atraso para as filmagens, quando o porteiro do estúdio entrou no set,levando um mendigo todo encardido pelo braço.

- Ele 'tava na frente do estacionamento, falando que queria guardar os carros!

O diretor ficou encantado, e prosseguiram com os trabalhos. Depois de alguns meses, o filme entrou em cartaz, e a atuação de Romano foi elogiadíssima pela crítica especializada.

Tempos depois, Bianchi resolveu convidá-lo para fazer outro filme. Foi até a casa do ator, mas lá recebeu a informação de um vizinho,que afirmava não ter visto Romano havia muitos dias.
O diretor procurou por toda a cidade, até que encontrou seu antigo colaborador dormindo embaixo de uma ponte, com uma garrafa de cachaça pela metade. Romano parecia não se lembrar de quem era.
Então, Bianchi já ia indo embora, quando resolveu dar uma cópia de seu novo script ao ator-mendigo, caso ele tivesse interesse em retornar ao cinema.
Os olhos de Romano brilharam, e ele pareceu recuperar a lucidez. Passou a ler o script afobadamente.
A história falava sobre um jogador de futebol, e meia hora depois de tê-la pego nas mãos, Romano já não tinha mais nada de mendigo:

- A parada é a seguinte, professor. Eu tou com fome de gol, e já tou calibrado pro campeonato.

Fizeram outro filme antológico. Romano ganhou um Oscar, indo à cerimônia com uma loira falsa debaixo de cada braço e um corte de cabelo muito malfeito.
Bianchi entendeu que ele havia se tornado um personagem, e que tinha um ator perfeito em suas mãos.
Romano fez outros filmes com Bianchi, sempre tornando-se o que o diretor desejava.
No entanto, o cineasta acabou se deslumbrando, e deu um filme policial ao seu brilhante ator.
Na noite da estréia, Romano estava chegando ao cinema com seu terno já batido de investigador, quando viu um bandido assaltando um casal.
O garboso herói correu para cima do infame vilão, que acabou, infelizmente, acertando um tiro em seu tórax.
Romano sangrava muito, e Bianchi, em prantos, pediu desculpas e perguntou o que poderia fazer por ele.

-Leve-me para dentro do cinema - disse Romano- Quero assistir um pouco do meu último trabalho.

A sessão começou, e só estavam Bianchi e Romano na sala. Bianchi chorava, Romano assistia atento, apesar de estar sangrando muito.

Em certo momento do filme, uma cena em que uma porta aparecia sendo aberta, Romano gritou energicamente, para a sala de projeção: - Pare o filme, agora!

Sua ordem foi obedecida. Então, ele se levantou, com um grande esforço, e caminhou em direção à tela. Bianchi não entendia o que estava acontecendo, mas parou de chorar.

Romano virou-se, e disse para Bianchi:

- Você é um grande diretor, Fredo, obrigado por tudo!

Então, ele deu um passo adiante, e entrou na tela, passando pela porta que estava aberta.

Romano nunca mais foi visto, a não ser nos filmes em que tinha atuado, os quais permanecem ícones do cinema.

Dizem que se você prestar muita atenção nas imagens de Romano, e ver seus filmes várias vezes, é impressionante como elas sempre parecem mudar. A cada vez que se vê o filme, ele parece atuar melhor.

1 Comments:

Blogger # said...

Cômico e triste. Belíssimo.

2:50 PM  

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