Monday, November 26, 2007

Andréa Rios

Era noite de sábado, quente e abafada. Andréa olhava-se no espelho e penteava o cabelo. Quando achou que estava bom, guardou a escova e saiu do banheiro, indo até a sala, onde seus pais assistiam televisão.
‘’Mãe, pai, eu ‘tou saindo. Depois do evento eu vou pra casa da Patrícia. Volto aqui amanhã de tarde, tá bom?’’
‘’Tudo bem filha’’, disse a mãe. ‘’Divirta-se, e tome cuidado, viu?’’
‘’Tchau, mãe. Tchau, pai’’.
‘’Tchau’’, murmurou o senhor Rios, recostado na poltrona e inebriado pelo jornal que passava na TV.

Desde o meio-dia, Carmo estava trabalhando na fiação elétrica. Já estava cansado, transpirava e fedia. Mas para ele, o fedor era imperceptível, e nem se dava conta disso.
Olhou para além do palco, onde trabalhava, e viu as pessoas entrando no salão. Sentiu um ódio crescente ao vê-los chegando, todos arrumados e sorridentes.
‘’Bando de playboy metido. Eu fico aqui trabalhando do meio-dia às oito, ganhando um salário de merda pra vocês dançarem, né?’’.
Andréa Rios conversava com suas amigas, em um canto do salão, que estava cheio. Dentro em pouco, o encontro de danças e atividade física da universidade ia começar.
Carmo olhava para as mulheres que chegavam, a maior parte estudantes de educação física. Ainda trabalhava nas caixas de som, mas de quando em quando levantava os olhos discretamente. Sua testa pingava suor.
‘’Dondocas vagabundas. Eu tenho que ficar com aquelas barangas do meu bairro, porque uma mulher desse tipo não vai dar bola pra mim, vai? Mas antes de ir com os playboy, elas nem pensam duas vezes. Ah, se eu pegasse uma dessas... eu mostrava o que era macho de verdade. Elas se acham as bonitonas, só porque são ricas. Nem olham pra mim. Ah, se eu pegasse uma mulher dessa...minha vida ‘tava feita...mulher dessas não tem na minha área’’.
Terminou de arrumar as caixas de som, e avisou o pessoal da organização do evento. Logo estava saindo do palco, para dar lugar a um fortão sorridente e meio abobalhado, que assumiu seu lugar atrás do microfone.
‘’Boa noite, pessoal’’, disse o fortão. ‘’Boa noite’’, responderam algumas vozes em coro. ‘’Estamos começando o nosso terceiro encontro de dança e atividade física, e vamos inaugurar o agito com uma aula de aeróbica. Todo mundo pronto? Então, solta o som, deejay’’.
O ar foi invadido por uma batida eletrônica repetitiva, e as pessoas começaram a balançar os corpos. Em meio à massa hipnotizada, dançavam Andréa Rios e suas amigas.
A algumas dezenas de metros dali, em um bar improvisado no canto do ginásio, Carmo engolia uma dose de cachaça e observava a multidão dançando.
‘’Eu podia ir dançar também. Nada! Eles iam rir de mim...gente nojenta. Ah, mas eu vou mostrar, ah, se eu vou. Um dia eu assalto um mauricinho desses, roubo o tênis dele e encho de porrada. É assim memo que tem que ser, porque eu sou louco! Eu sou muito louco! Ainda vou ter um tênis desse, um celular de rico...todo mundo vai ver’’
Acabou a sessão de aeróbica, e Andréa Rios tinha o rosto suado. Seu cabelo colava-se dos lados da face. ‘’Nossa, muito legal, né? O que será que eles vão fazer depois’’, perguntou Patrícia. ‘’Não sei, mas espero continuar no pique’’, respondeu Andréa.
Deu-se um pequeno intervalo no evento, e os participantes dispersaram-se no salão. Alguns separaram-se em pequenos grupos e conversavam; outros foram ao bar tomar alguns drinques alcoólicos; houve os que comprassem bebidas de um ambulante malandro que tinha conseguido entrar no local, e outros ainda que foram ao banheiro.
Entre os que foram ao bar, um rapaz tentava erguer uma menina no colo. Ela gritava, em tom de falsete, entrecortado de risadas. ‘’Não! Pára, pára!’’.
Carmo rosnava pelo canto da boca como um cão, roendo-se de inveja.
O evento recomeçou, e Carmo abriu uma segunda garrafa de cachaça.
Após o terceiro copo, sentiu vontade de urinar. Pediu para o barman guardar o copo e a bebida por um tempo, pois ia ao banheiro, e saiu.
Andréa Rios dançava, chacoalhando os cabelos. Súbito, sua vista turvou um pouco, e viu pontos roxos. ‘’Páti, não tou me sentindo bem’’.
‘’ Que foi, Andréa?’’
‘’Acho que é o calor, não sei...’’
Andréa tinha o rosto vermelho como um pimentão, e estava zonza.
‘’ Toma uma água, lava o rosto...depois você volta’’
‘’É...eu tou indo, já volto.’’
Saindo do banheiro, que era distante da pista de dança, em um canto escurecido do ginásio, Carmo viu Andréa entrando no sanitário feminino. Mulherão.
Cabelo castanho, liso, corpo bem torneado.Sozinha.
‘’Arre, Carmo, é a sua chance...Espera a potranca sair que você pega ela de jeito’’.

Andréa saiu do banheiro, sentindo-se mais refrescada, e encontrou Carmo do lado de fora.
‘’Moça’’, disse ele com um jeito manso de falar. ‘’Será que você pode me dar uma força?’’
‘’ Depende...que que aconteceu?’’
‘’É que eu trabalho na manutenção, sabe...e eu acabei perdendo a minha carteira. Você não pode me ajudar a dar uma procurada? Eu tenho dois filho pra criar, moça...’’
Andréa tinha bom coração.
‘’Claro, eu ajudo o senhor...Onde foi que você perdeu?’’
‘’Ali, naquele lugar ali...’’ disse Carmo, apontando para a porta de um depósito escuro.
Andréa entrou no depósito, e acendeu a luz. O lugar era grande, e estava cheio de bolas dos mais diversos esportes, redes, bambolês e outros acessórios.
‘’Aí, tá vendo, eu não consigo encontrar...’’, disse Carmo.
‘’Calma que eu tou dando uma olhada’’, disse Andréa.
Ao passar os olhos pelo chão, viu em um canto uma carteira marrom, de má qualidade.
‘’Ali, peraí que eu pego pro senhor!’’
Andréa se abaixou, e subitamente sua vista desapareceu com um flash de câmera fotográfica, e então tudo era roxo e depois escuro.
‘’E agora, o que eu faço?’’, pensou Carmo, ainda segurando a chave-inglesa com a qual desferira o violento golpe na nuca da estudante.
‘’Será que ela tá viva? Acho melhor terminar o que eu comecei’’
Apertou o pescoço de Andréa com muita força, durante vários minutos, até ter certeza de que ela estava morta.
Após matar Andréa, resolveu não fazer mais nada. Na verdade, nem tinha um plano, e nem sabia bem o que queria fazer quando a viu entrando no banheiro.
Agora, tudo o que pensava era em se livrar do que havia feito.
‘’Relaxa, Carmo...vou tomar mais algumas, fingir que tou normal e depois vou zarpar daqui’’.
Apanhou a carteira, colocou no bolso e saiu.
Depois de um tempo, Patrícia começou a sentir falta de Andréa, e ficou preocupada. Foi ao banheiro e não havia sinal da amiga.
‘’Talvez ela tenha ido para casa’’.
Tentou ligar no celular de Andréa, mas estava desligado.
‘’Coitada, deve ter ido para casa, mas vou ligar para me certificar’’.
Andréa não estava em casa, e o telefonema de Patrícia deixou a família Rios apreensiva. No entanto, não poderiam dar queixa de desaparecimento antes de 24 horas, e não haviam se passado nem duas horas.
Patrícia reuniu alguns colegas e fizeram uma busca pela universidade, presumindo que Andréa não estaria despercebida em um lugar tão movimentado como o ginásio. Não a encontraram.
O casal Rios não dormiu naquela noite, e teve um domingo muito ruim. Finalmente, veio a noite e eles puderam dar queixa do desaparecimento da filha.
Deste ponto para diante, a agonia não iria durar muito, pois na manhã de segunda-feira um zelador encontrou o corpo da garota no depósito do ginásio.
O caso revoltou a cidade, e teve repercussão em veículos midiáticos de várias partes do país.
Carmo, o único que sabia o que tinha acontecido, manteve-se calado.
As semanas se passavam, e a polícia não conseguia descobrir nada sobre a morte de Andréa.
Da capa dos jornais, a estudante foi para o miolo, e as matérias sobre ela foram diminuindo, até não passarem de ínfimas notas.
A cidade e o país encontraram outros assuntos para se preocupar, inclusive Carmo. Mas os pais de Andréa Rios, ah, esses jamais esqueceriam.
Passaram-se alguns anos e Carmo foi morto por um amigo em uma briga de bar, causada por um jogo de baralho.
Não foi um caso de destaque nem mesmo para sua família, que o considerava um traste.
Hoje, o túmulo de Andréa Rios está em um cemitério, ladeado por bonitos campos verdes. A maioria das pessoas que passa em frente dele não se lembra exatamente do caso, apesar de que alguns poucos mais informados ainda têm algumas faíscas de memória.
Mesmo assim, não são incomuns os que deixam de notar a pouca idade da morta, e a beleza de seu rosto, deixando-os com um sentimento de pesar e a formular hipóteses sobre o que causou sua morte.
É freqüente ver flores colocadas por desconhecidos no túmulo de Andréa, ladeando o seu rosto de olhar tranqüilo.
O túmulo de Carmo, mal-cuidado, já não chama tanta atenção. Não há flores, nem secas, não há velas, nem sequer fotos. No máximo, recebe uma limpeza descuidada de algum zelador distraído, pensando no que a mulher está preparando para a janta desta noite, e se perguntando porque as sextas-feiras levam tanto tempo para acabar.

3 Comments:

Blogger João Gabriel said...

Massa!

Ah! Fiz o blog... agora já era!

8:42 PM  
Blogger João Gabriel said...

Vadio!

2:01 PM  
Blogger João Gabriel said...

Ó, meu caro vagabundo
deixe-nos mais uma de suas pérolas
para nosso deleite!




Fica só azarando a mulherada e não escreve mais???

6:12 AM  

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