Tuesday, January 15, 2008

Olho-Vazio

Era uma noite tensa na fazenda, e muito se comentava na senzala, assim como na casa-grande. Salomão, o escravo que havia cometido um impensado ataque a seu próprio senhor algumas horas antes, seria punido pelos feitores e pelo proprietário em pessoa, Álvaro Guimarães dos Reis.
Salomão despertava medo e ódio entre os brancos e admiração entre os negros, porém, não sem uma dose de receio e pavor por parte de seus companheiros de senzala. Era um negro da Guiné, alto e magro. Seus olhos eram escuros e furiosos, o rosto, seco e ossudo como o de uma caveira e ele quase nunca falava, a não ser quando estritamente necessário.
Na verdade, seu nome não era Salomão, sendo que este lhe havia sido dado por um dos feitores da fazenda. Seu passado era desconhecido, e havia boatos de que ele fora um feiticeiro quando na Guiné. Alguns escravos afirmavam tê-lo visto praticando magia negra mesmo no Brasil.
Álvaro Guimarães dos Reis, o senhor de engenho, também era um homem que dividia opiniões. Temido e odiado pelos negros, tinha certo respeito entre os brancos, mas também muitos inimigos. Sua brutalidade para com escravos rebeldes era lendária, e falava-se dele até em terras muito distantes daquela fazenda da Bahia.
Na tarde daquele dia, Álvaro havia sido tomado de desejo por uma negra de quinze anos chamada Laura. Diante da recusa da jovem, tentava violentá-la quando foi parado por Salomão, com um soco que trincou o queixo do senhor de escravos.
Enlouquecido pela dor e pela vergonha, Álvaro ordenou que o escravo fosse acorrentado e trancado em um galpão vazio, anteriormente utilizado para se guardar açúcar. De noite, reuniu alguns feitores de sua confiança e partiram para o galpão, sem revelar seu intuito a ninguém.
Quase todos no engenho acreditavam que Salomão não acordaria vivo no outro dia, ainda que houvesse quem pensasse que seu corpo era fechado.
Sem que ninguém fora do galpão soubesse exatamente o que estava acontecendo, Álvaro executou a sua vingança. Primeiro, o negro foi chicoteado algumas centenas de vezes, ficando com as costas em carne viva. Depois disso, seus braços e pernas foram quebrados por dois feitores, fazendo com que ele berrasse de dor. Não obstante, Álvaro rasgou o lado direito da face do negro com um canivete, vazando o seu olho para fora da órbita.
Finalmente, após tamanho suplício, o senhor se satisfez e mandou enforcar o negro em uma das vigas do recinto. Salomão foi enterrado em uma cova rasa, em meio à mata que circundava a fazenda.
Quarenta anos se passaram, e a propriedade sofreu mudanças. Agora, Álvaro era um velho de setenta anos, e tinha uma esposa e dois filhos jovens nos quais depositava as esperanças de perpetuar o seu legado. Mandou os dois rapazes para estudar em Coimbra, com o fim de que eles pudessem administrar bem a fazenda quando a herdassem.
Após dois anos fora, os jovens voltaram ao engenho a fim de passar lá algumas semanas antes de retornarem aos estudos. Ao descerem da carruagem, trouxeram uma surpresa que gelou o coração de seu pai.
Junto aos rapazes estava um negro, com as mãos e os pés algemados. Era alto, magro e cego do olho direito, ostentava uma profunda cicatriz naquele lado da face e tinha entre trinta e quarenta anos.
Ao vê-lo, Álvaro lembrou-se de Salomão. Como havia se passado muito tempo desde sua morte, já não se recordava mais da aparência do negro, mas teve a impressão de que era idêntico ao outro.
Após cumprimentar seus filhos, interpelou-os sobre aquela presença desagradável.
‘’Por que trouxeram este negro junto com vocês?’’
‘’ No caminho para cá, nós o vimos vagando pela estrada em uma região isolada’’, disse o mais velho. ‘’ Ninguém o conhecia nas fazendas próximas, então trouxemo-lo para o senhor como um presente, pois mesmo não tendo um dos olhos, parece ser ainda forte para o trabalho’’.
Apesar do temor que sentia, Álvaro não quis ser considerado supersticioso, e acabou aceitando aquele presente tão odioso. Porém, procurava não ficar perto do negro, apelidado pelos jovens de Olho-Vazio, e nem lhe dar ordens diretas, evitando sempre a sua presença.
Após algumas semanas na fazenda, os rapazes retornaram a Coimbra. As coisas corriam normalmente, mas Álvaro não se sentia confortável com a presença de Olho-Vazio em suas terras, ainda que este não falasse com ninguém e nunca criasse caso.
Dois meses após a partida dos filhos, o senhor recebeu uma carta escrita pelo reitor da universidade de Coimbra, a qual estava lacrada com um selo que continha o brasão da instituição.
Preocupado, rasgou o envelope e abriu a carta. Ao ler o conteúdo, seu rosto se contorceu de dor e ele se sentou sobre uma poltrona, escondendo a face entre as mãos.
Seus herdeiros estavam mortos, vitimados por uma doença misteriosa que não havia afetado mais ninguém.
Enquanto Álvaro estava recluso em seu quarto, pensando em uma maneira de relatar o ocorrido à mulher, foi interrompido por um de seus capatazes.
‘’ Sinhô, ocê sabe aquele negro cego que os sinhozinhos trouxeram? Acabei de pegá ele fazendo feitiçaria. Dizem que ele tem feito isto desde que chegou aqui’’
Ao ouvir isto, Álvaro sentiu-se furioso. Nunca tinha levado as crenças dos negros muito a sério, mas com a dor que sentia pela morte dos filhos, somada aos receios sobrenaturais que aquele escravo lhe despertava, encontrou nele o seu bode expiatório.
‘’Chicoteiem-no duas mil vezes, não me importa se ele morrer no meio. Agora, saia daqui’’
O capataz se retirou, e Álvaro retornou ao seu sofrimento. Algumas horas depois, contou tudo à mulher, que precisou ser sedada para resistir à tristeza.
No começo da noite, o capataz voltou a falar com seu superior.
‘’Sinhô, nós demos o castigo. Ele ficou com as costa em carne viva, mas nem gritou, e depois levantou e saiu andando’’.
‘’ Certo, então amanhã providenciamos um castigo melhor. Deixe-o acorrentado no velho galpão, e não se atreva a falar comigo de novo esta noite’’.
Cansado e abatido, Álvaro foi dormir junto à mulher, que estava em sono profundo por causa dos remédios. Após passar algumas horas se revirando, ele finalmente adormeceu, e teve um sonho.
Caminhava pelas matas ao redor de sua fazenda quando ouviu as vozes de seus filhos, implorando por ajuda. Ao olhar com atenção, viu os dois rapazes, pálidos e esqueléticos, rastejando em sua direção. Apavorado, começou a andar para trás, sempre olhando para os rostos dos garotos, inexpressivos e sem olhos nas órbitas. Após recuar alguns passos, sentiu que estava pisando sobre terra fofa, como a de uma cova recém-coberta.
Mal este pensamento lhe passou pela cabeça, uma mão agarrou seu tornozelo, e o puxou para baixo. Ao dar conta de si, Álvaro estava dentro da sepultura, encarando o rosto de Olho-Vazio, cuja esclera incolor parecia brilhar. O negro sorriu para ele, e o senhor acordou suado, com o coração batendo forte, e mal conseguindo respirar.
‘’Amanhã’’, pensou, ‘’Vou matar este negro agourento’’. Virou-se para apanhar um copo de água de sua mesa de cabeceira, quando viu com o canto do olho algo se mexendo do outro lado do quarto.
Ao olhar melhor, viu uma silhueta escura se aproximando de sua cama. Forçou a vista e enxergou Olho-Vazio, encarando-o com sua órbita opaca e caminhando em direção a ele a passos silenciosos.
‘’Salomão...’’, gaguejou Álvaro, enquanto o medo lhe tomava novamente. Seu coração, que batia cada vez mais rápido, subitamente parou, causando-lhe uma dor aguda no peito. Seus olhos esbugalharam-se, e finalmente perdeu a respiração, mergulhando na escuridão.
No outro dia, a mulher de Álvaro enlouqueceu, ao saber que além de ter perdido os filhos estava viúva.
Quando os capatazes foram apanhar Olho-Vazio, ele havia sumido do galpão onde fora acorrentado, deixando tudo em perfeito estado. Como havia fugido e onde fora parar, ninguém tinha idéia.
Quanto à propriedade, foi herdada por parentes distantes do antigo senhor, que logo a abandonaram, por terem estranhos sonhos e visões com um negro que não tinha um dos olhos enquanto lá estavam.

1 Comments:

Blogger João Gabriel said...

Edgar Allan Bique

8:23 AM  

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