Sunday, December 16, 2007

Quatro pessoas, um entardecer ,uma canção

Fim de tarde de uma sexta-feira, o céu e tudo o mais estão laranja escuro. Um homem de terno, enfurnado em um carro no meio de um engarrafamento, sua por baixo do pano grosso de suas roupas. Pensamentos invadem-no e flutuam por dentro de sua cabeça. Ele olha para o lado, vê pessoas voltando para casa de uma caminhada, conversando, e tenta se abstrair de seus problemas. Que lhe importa que esteja ficando velho? Ele ainda não o é...

Um rádio começa a tocar Eye in the Sky, com sua batida oitentista:

Don't think sorry is easily said
Don't try turning tables instead
You've taken lots of chances before
But I'm not gonna give anymore
Don't ask me
That's how it goes
Cause part of me knows what you're thinking

A uma quadra dali, um menino está em frente ao portão de sua escola, chutando pedras. A proximidade da noite o incomoda. Onde está seu pai? Um velho zelador o faz companhia. Não é a primeira vez que isso acontece. Ele terá que ligar do orelhão para a mãe. Quase todas as sextas, que é o dia em que seu pai pode vê-lo, ele se atrasa ou falta ao compromisso.

O radinho prossegue:

Don't say words you're gonna regret
Don't let the fire rush to your head
I've heard the accusation before
And I ain't gonna take any more
Believe me
The sun in your eyes
Made some of the lies worth believing.

O homem se mexe, suado, sobre seu colchão. Praga, tinha que ter buscado o filho. Olha a janela, já está tudo escuro. Vai continuar dormindo, a mãe já deve tê-lo pego e o levado para a casa dela. De novo. Ele se arrepende um pouco, e volta a se deitar.

Eye in the Sky chega ao refrão:

I am the eye in the sky
Looking at you
I can read your mind
I am the maker of rules
Dealing with fools
I can cheat you blind
And I dont need to see any more
To know that
I can read your mind, I can read your mind

A mulher chega em casa com seu filho pequeno. Só eles dois, naquele pequeno lar iluminado em meio à escuridão do fim do dia. Ela sente vontade de chorar, mas se segura.Entram na casa e ela vai para a cozinha fazer o jantar.

O rádio prossegue, prestes a finalizar:

Don't leave false illusions behind
Don't cry cause I ain't changing my mind
So find another fool like before
Cause I ain't gonna live anymore believing
Some of the lies while all of the signs are deceiving.

Mais alguns compassos, e a música termina, assim como o dia. As pessoas também terminam, mas nascerão de novo amanhã.

Sunday, December 09, 2007

Casas vazias

Eu estou andando pela rua. É um dia estranho. A cidade está vazia, o céu está nublado, as árvores estão secas.
Passo em frente a casas abandonadas e cinzentas. Vejo uma delas com o portão aberto, e resolvo entrar. Por que não?
Passo pelo portão, experimento a porta e me surpreendo ao ver que está aberta. Entro na casa, e vejo que não há nada nem ninguém lá, mas tudo está em perfeitas condições. Não há móveis, mas o assoalho e as paredes estão como no dia em que foram feitos.
Sento-me em meio a sala, as pernas cruzadas sobre o assoalho de madeira. Imagino que a casa é minha, e que há crianças correndo, mobília, risadas, música.
Por um momento, eu quase acredito que poderia ter sido assim, eu quase enxergo e toco aquela solidez, aquela estabilidade, em meio à escuridão da tarde nublada.
Mas um trovão desperta-me de meus devaneios, e resolvo sair da casa e retornar à rua, após constatar que eu não posso fazer nada para ressuscitá-la.
Ao deixar a casa, deparo-me com um cachorro totalmente negro, parecido com um dobermann. Seus olhos vermelhos estão queimando de fúria, suas costas estão eriçadas e prontas para o ataque.
Não desejo provocar o cão, então me esgueiro de lado com as costas na parede, buscando chegar ao portão. O dobermann segue-me, rosnando baixo.
Ao passar pelo portão, desato a correr. O cachorro maldito sai para a rua e vai atrás de mim.
Corro utilizando toda a força de minhas pernas, mas o cão é melhor que eu. Logo estou exausto. Meus músculos parecem estar à beira da explosão, meu pulmão arde como se estivesse queimando, minha vista torna-se turva.
O dobermann brinca comigo, só atacará no momento em que eu cair. Talvez se eu lutasse? Será que eu tenho alguma chance?
Não, prefiro não arriscar. A rua é infinita e vazia. É como uma rodovia. Onde estão as casas? Por que não tem ninguém aqui?
Estou à beira da inconsciência, minha corrida se reduz a um trote ridículo. O cachorro morde meus calcanhares, e depois se afasta, apenas para voltar mais uma vez.
Vejo que a estrada está chegando ao fim, limitada por um desfiladeiro. Não há alternativa, vou morrer.
Porém, no campo ao lado da estrada, vejo uma árvore. Em um último esforço, no qual os músculos de minhas pernas se estiram quase até arrebentar, consigo acelerar o meu passo e chegar até aquela árvore.
Escalo-a o mais rapidamente possível, sem olhar para baixo. Após chegar ao topo, vomito por causa do esforço, e desmaio sobre um galho grosso.
Algumas horas depois, perto do pôr-do-sol, desperto. O dia ainda está nublado, agora em um tom mais escuro. Por um pequeno buraco entre as nuvens, passam os raios dourados dos últimos minutos de luz. Um vento fresco agita o mato dos campos ao redor da árvore.
Embaixo, o dobermann espera, em pé. Grito imprecações, atinjo-o com laranjas apanhadas da árvore, mas ele não se move. Tudo bem, vou dormir, amanhã de manhã ele terá ido embora.
No outro dia, porém, o dobermann está lá, em pé, esperando que eu desça. Resigno-me. Vou esperar mais um dia.
Durante a tarde, noto que há algumas tábuas espalhadas pela árvore. Provavelmente, havia aqui alguma casa montada por crianças, e que foi destruída por um vendaval, por adultos ou mesmo pelo tempo.
Apanho as tábuas e passo o meu tempo montando uma pequena casa para mim. Incrivelmente, consigo erguer uma pequena edificação até confortável. Lá embaixo, o cão espera.
Vem a noite, e tenho fome e sede. Apanho algumas laranjas e descasco-as com lascas da própria árvore, em um processo muito falho e penoso.
Consigo alimentar-me e hidratar-me, mesmo que insuficientemente.
Passam-se mais dois dias, o maldito demônio ainda está lá embaixo. Começo a conformar-me com a idéia de nunca deixar a árvore.
Com algumas cascas de laranja, construo bonequinhos para me fazer companhia. Dou-lhes nomes, profissões, genealogias, personalidades. Crio famílias, cultura e História.
As semanas vão se passando, o objetivo de minha vida passa a ser criar existências para os bonecos de casca de laranja.
Às vezes, penso que eu deveria descer e enfrentar o dobermann. Mas sou um inútil, não conseguiria fazê-lo. Não seria, porém, mais honrado morrer lutando do que deixar as laranjas acabarem e perecer pela fome e pela sede?
Por quanto tempo conseguirei sobreviver com as laranjas?
Tento confortar-me, esquecer das perguntas, para as quais não tenho respostas.
De um jeito ou de outro, isto vai acabar. Tente acreditar nisto. Nada dura para sempre, o tempo de hoje é só o passado do futuro.
Esqueça isto.Esqueça o dobermann.Foque-se nas laranjas. Laranjas medievais, pós-modernas, laranjas pop.
Laranjas...