Tuesday, February 27, 2007

Janelas

Naquele dia, voltei para casa de ônibus. Definitivamente, não a mais agradável das experiências.
Meus olhos ardiam, porque não havia dormido bem. Minha garganta estava seca, porque havia gasto minha saliva com inutilidades. Meus maxilares doíam, porque havia forçado sorrisos demais.
E estava calor, ah, como estava calor! Ainda mais naquele ônibus lotado, onde você ia se esfregando em todas as pessoas possíveis,sem direito a pudor. Era como um caminhão transportando cavalos, com direito a solavancos.
E que solavancos! O papel eu carregava em uma das mãos,amassava-se sem comedimento. O dia estava nublado e feio . As pessoas eram como gralhas. ''Rá, rá, rá!''. Ecos em minha cabeça. Dor de cabeça. Eu não via as pessoas, só ouvia seus grasnados. Minha mente tentava fugir para outro lugar. Que fosse ele no passado, no futuro, ou no presente, mas em outra conjunção espacial.
Migrei para mais perto da porta. Lá tinha mais espaço. Senti um alívio ao poder desenrolar meu corpo e estalar meus ossos, mas ainda não via a hora de chegar em casa. Não via nada ao redor, minha mente estava em casa.
De súbito, olhei para um lado e vi duas garotas. Estavam sentadas em um banco, conversando. E fiquei observando-as. Uma falava, e a outra prestava atenção. As duas sorriam ocasionalmente. A que falava parecia bem empolgada, gesticulava, e a outra correspondia docemente, prestando atenção.
De alguma forma achei aquilo bonito, e comecei a enxergar as coisas para as quais meus olhos apontavam.
E prestei atenção na janela no fundo do ônibus. Ela não tinha nenhuma propaganda estampada, há tempos que não pegava um ônibus assim. Podia-se ver as coisas escorregando para trás do ônibus, conforme ele andava. O enquadramento era de cinema. Fiquei fascinado. Parecia que estava olhando para algum cenário de videogame, ou assistindo algum filme.
Estava prestando atenção a tudo. Absorvendo o mundo, como se fosse um quadro.
Violetas, mendigos, postes, bancos...
E então eu desci do ônibus, e reparei que um pedaço de céu azul estava surgindo no meio de uma nuvem.

Thursday, February 22, 2007

Civilizações

Algumas pessoas queriam viver como os índios. Repartir a caça, trançar esteiras de palha, plantar milho, olhar as estrelas do céu, nadar nu em um rio, contar velhas lendas em volta de uma fogueira.
Algumas pessoas acham que os índios são santos, que os índios nunca roubam, nunca matam, nunca traem. E que a civilização corrompeu o homem.
Mas a civilização não corrompeu o homem. A bondade e a maldade estão enraizadas no coração de cada homem. A civilização apenas potencializou o que cada um trazia dentro de si.
Em uma sociedade indígena, em que os recursos tecnológicos são escassos, assim como a população, e a colaboração é essencial, há provavelmente menos conflitos porque cada indivíduo necessita muito do outro. É uma questão de sobrevivência.
Em nossa sociedade, onde temos gays, comunistas,negros, brancos, vermelhos, empresários,mendigos, donas-de-casa, rappers e lutadores de vale-tudo, dentro de uma infinidade de tipos que surgem a cada minuto, há gente saindo pelo ladrão. Há conflitos,obviamente.
Lemos no jornal que alguém foi baleado e morreu no Rio de Janeiro, e isso não tem nada de anormal.
Mas isso não faz com que os índios sejam melhores do que nós. Quando há uma enchente, o leão nada ao lado do antílope e não o ataca. Questão de conveniência.
Nós desenvolvemos uma cultura sofisticada, baseada na segmentação. Enquanto a arte indígena mantém seus mesmos padrões há seculos, e cada indivíduo sabe pintar, caçar, pescar e trançar objetos seguindo as tradições, nossa arte rompeu todas as fronteiras do pensamento comum.
Somos livres para escrever o que queremos, somos livres para fazer o que queremos. Podemos romper com a tradição ou restaurá-la, nossa arte e ciência são flexíveis.
Está certo que nossa indústria causou vários problemas ao planeta. Aquecimento global, desmatamento, extinção de muitas formas de vida, inúmeras formas de poluição.
Mas sendo avançados, podemos corrigir isto. Temos meios para lutar, temos conhecimento para lutar, e mais do que tudo, temos necessidade de lutar.
Se todo homem pudesse pensar assim, se todo homem aproveitasse pelo menos uma pequena porcentagem do conhecimento que temos, e uma porcentagem maior ainda da sensibilidade que ele próprio tem, então poderíamos fazer de nossa sociedade um lugar do qual gostássemos verdadeiramente, e não precisaríamos ficar sonhando com aldeias indígenas.

Wednesday, February 21, 2007

Vai em frente, garotão!

Meu parto foi bem complicado. Lutei para sair do ventre de minha mãe. Parece que eu estava em alguma posição errada lá dentro. Então eu rastejava, rastejava, e estava me sentindo muito cansado, e não ia a lugar nenhum.
Foi quando eu ouvi uma voz, vinda de não sei onde, e a voz dizia: ''Vai em frente, garotão!''. Utilizei toda a minha força de bebê e consegui abrir caminho, e nasci.
Aos 7 anos estava indo pela escola pela primeira vez, e era um garoto tímido e quieto, usando óculos de lentes muito grossas. Chegando lá, encontrei com um pivete que não gostava dos meus óculos, ele tirou-os de mim e quebrou no meio. Cego, chorava desconsolado. E então veio aquela voz de novo, e disse '' Vai em frente, garotão!''. Mordi a mão do pivete, mas mordi bem fundo mesmo. Ele nunca mais me encheu o saco.
Quando eu tinha 14 anos, caí de amores por uma garota. Escrevi cartas de amor, e mandei flores, e até comecei a pentear o cabelo, mas ela não ligava para mim. Ela preferiu ficar com outro garoto. Um que usava tênis multicoloridos e fazia piadas idiotas. Fiquei desconsolado, e pensei em fugir para a França e alistar-me na Legião Estrangeira. Então aquela voz misteriosa, que nunca tinha me deixado, veio e disse ''Vai em frente, garotão!''.
Os anos passaram, e eu continuei indo em frente. E arranjei um bom emprego, e uma mulher que gostava de mim, e arranjei filhos que me orgulharam.
E cada vez que eu me sentia mal, vinha aquela voz e dizia ''Vai em frente, garotão!''. Até que eu comecei a ir em frente sozinho, um tanto quanto tardiamente, e percebi que não precisava mais daquela voz, e ela parou de vir.
Então, certa vez em que eu caminhava por uma praça, voltando do trabalho, as coisas me pareceram ter todas uma cor surreal. E no fim da praça havia um homem flutuando.
Era um velho, de cor roxa e barba dourada. Usava um longo manto azul claro (ou seria verde azulado?). E um cajado prateado.
E eu disse: '' A mangueira ganhou o carnaval deste ano?''

E o velho disse: ''Você não compreende...durante toda a sua vida eu estive ao seu lado. E quando você fraquejava eu te incentivava. E eu sempre acreditei em você''

Então eu caí de joelhos, e abracei seus pés roxos, e disse: ''Eu creio, eu creio, o que posso fazer? como posso retribuir?''.

E o velho disse: '' Eu quero 50 reais por cada toque, e mais as horas extras. E os décimos-terceiros, sem dúvida que sim.''

Sunday, February 18, 2007

Eu sô brasilêro

Eu sô brasilêro
Olelêo- Olalá
Eu sô Brasilêro

Putaquepariucaralhoporra

Eu sô brasilêro
Comi tua irmã
Comi tua mãe

Xinga daqui xinga delá

Eu so brasilêro
Sô malandrão
Morô?

Eu sô brasilêro
Americano é tudo retardado

ÉissaÊ

sambadaquisambadelá

Wednesday, February 07, 2007

O machão

Cheguei em casa tropeçando nos pés, deviam ser umas duas da manhã. Depois de procurar um pouco a fechadura, encontrei-a, e consegui entrar em casa. ''Carolina vai ficar brava'', pensei.
Mas então fiquei em dúvida: ''Existe alguém chamado Carolina? Já existiu?''. Entrei em casa, não havia ninguém além de mim. Tudo rodava. Achei melhor tomar um banho, e fui cambaleando até o banheiro.
O jato de água gelada na cabeça me deu arrepios. Mas eu precisava agüentar, já tinha agüentado coisas piores. A água fria me deixou lúcido, tão lúcido como Albert Einstein. Botei uma bermuda qualquer e sentei-me no sofá, água ainda pingando de meus cabelos amassados sobre a testa.
''Já faz um ano que a Carol foi embora''. Tive vontade chorar por alguns centésimos de segundo, mas então pensei ''Tomara que esteja morta, tomara que esteja no IML e sua família esteja desesperada''.
Talvez eu seja um frouxo. Homem que chora é frouxo? Lembrei do meu professor, na faculdade de Administração. O seu apelido era Senhor Progresso. O Senhor Progresso adorava usar a expressão ''frouxos''.
- A maioria de vocês serão frouxos! Só alguns poucos têm a ousadia, o tino do administrador!

''Velho safado'', pensei. ''Na época eu era ingênuo, tinha 20 anos e acreditava. Mas era só um velho amargurado, que gostava de olhar para as meninas.''

Sentado no sofá, relaxado, pensei que meu corpo relaxado estava '' frouxo''. Ri da alusão. Pensei em visitar o Sr.Progresso (Estaria vivo ainda?). Pensei em visitá-lo e dizer: ''Eu sou um frouxo, sim! Sou um frouxo e estou vivo até hoje! E sou um frouxo com orgulho!''

Mas talvez haja gente mais frouxa do que eu. Veja o Bill Gates...aquilo sim é um frouxo. É adorado por seus bilhões. Mas bilhões não compram colhões. Ri da rima involuntária. Ria sozinho, como um idiota. É gostoso ter ódio às vezes. Terapêutico. Não, terapêutico, não. Tonificante, talvez. Faz você se sentir mais vivo.

Mas voltando ao Bill, você olha para a cara do sujeito e vê aquela cara de coelhinho. Pusesse eu e ele num ringue eu arrebentaria com ele. Isso sim é um frouxo, com F maiúsculo.

Olhei para a foto do pai, encarando-me severamente no canto da sala. ''Vai à merda, velho! Você está morto, que moral tem? Todo mundo é santo depois de morto.''

Mas aquilo não interessava, queria voltar a pensar sobre frouxos. ''Os kamikazes...a maior enrolação de todas. Todos achavam-nos machos, mas eram uns frouxos, isso sim! Ficar se matando, em vez de tentar enfrentar o inimigo. No começo dava certo, mas depois os americanos perceberam e os japoneses continuaram se matando. Frouxos.''

É. Eu não sou frouxo nem nada. Eu sou é muito macho. Os outros é que são frouxos. Escondem-se atrás de bombas e de dinheiro, escondem-se através de sorrisos cínicos e de aparências, mas todos frouxos.

''Carolina...que estará fazendo?''. 3 horas. Acho que vou dormir. ''Um galo sozinho não faz a manhã...quando li isso?''.

Dormi. Sonhei que era um kamikaze.

Uma bela poesia matinalmente composta para alegrar o coração das maravilhosas pessoas que habitam este lindo planeta azul

Todos nós somos mentirosos. E somos tão bons atores. E somos tão nobres.E nós deveríamos ser o que fingimos estar sendo. Porque nós somos lixo. E as pessoas pobres do Nordeste. Elas também são lixo.Elas foderiam sua bunda se você pegasse o sabonete. E a princesa Diana. E o papa. E tudo o que respira. E você pode fugir pra qualquer outro lugar. Então fuja. Mas não pense que você vai deixar de ser o que é. Você não pode fugir de si mesmo. E as pessoas são como árvores. Alguém disse. E as pessoas são como árvores e queremos derrubar todas. Como fizemos com nosso planetinha. Será que é isso que você quer dizer?. E eu não quero ajudar. Eu quero jogar gasolina no fogo. Por que aqui é o inferno, meu amigo. Bem-vindo.

Thursday, February 01, 2007

Mário

O despertador tocou às 7:15, salvando Mário de sua angústia. Ele acordou de sopetão, respirando avidamente e suando frio. Desligou o despertador, levantou-se, foi ao banheiro para urinar e depois foi à sala, onde curvou-se para olhar o aquário que ficava sobre uma cômoda.
''Sabe, Moby Dick''- disse ele ao pequeno peixe, que ficava nadando pacientemente de um lado para outro do aquário- ''Andei tendo aquele sonho de novo...em que minha vida era um videogame! Isso já está me incomodando...os remédios que o psicólogo receitou já não fazem mais efeito''. E Moby Dick continuava nadando de um lado para o outro do aquário, e Mário se cansou de olhar para ele.

Abriu a cortina da sala e viu o dirigível enorme passando ao fundo da cidade. Aquilo o desagradou. Era um belo dirigível, já o tinha visto outras vezes. Mas depois de um pesadelo como aqueles, um dirigível tão colorido flutuando em um céu azul de brigadeiro lembrava muito a um cenário de videogame. E Mário começou a ter suas descofianças de novo.

Olhou-se no espelho. ''Não tenho um físico de herói de videogame. Sou magricela...rosto quadrado demais, óculos fundo de garrafa...''. Pensou no seu trabalho: engenheiro. ''Por que alguém faria um videogame sobre um engenheiro? Ainda mais de uma companhia medíocre como a minha!''. Mas não estava de todo modo convencido. ''Sempre me disseram que eu era órfão! Talvez eu não tenha pais porque sou um personagem de videogame!''.

Ficou um tempo a pensar sobre aquilo, mas como sempre, não chegou a uma resposta concreta.
Já eram 7:30, e ele tinha que sair para ir trabalhar em dez minutos. Mudou de roupa, desceu para o estacionamento do prédio e pegou o seu carro, uma bonita BMW preta.

Estava com azar, pois o trajeto por onde passava para ir à firma estava obstruído por um engarrafamento de 10 km. ''Merda'', pensou, olhando para seu relógio de pulso, ''Vou ter que passar pela Favela da Lata se quiser chegar na hora''. Guiou a BMW até uma rua lateral e entrou na imensa favela. Já tinha feito este trajeto algumas outras vezes, mas sempre ficava nervoso.

Para se acalmar, começou a pensar repetidamente: ''Estou em um videogame onde tudo é cenário, estou em um videogame onde tudo é cenário''.
Estava passando calmamente pela favela, feliz por estar em um videogame, quando viu que a ruela da saída estava bloqueada por troncos de árvore. Mário freiou bruscamente, e resolveu dar a volta e pegar o engarrafamento. ''Antes vivo e desempregado do que morto e honrado''.
No que olhou pelo retrovisor três homens apontando fuzis para o carro. Ficou parado, e os homens entraram no carro gritando ''Perdeu, mané, perdeu! Toca essa banheira daqui que a gente vai fazer uma visitinha no caixa eletrônico!''.
Mário estava apavorado, imovél, e fazia exatamente o que os homens mandavam, murmurando ''É tudo um videogame, É tudo um videogame!''. ''Videogame, mané?'' disse um dos bandidos. ''Videogame é o que vou comprar com a tua grana!''.

Estavam quase chegando ao caixa quando cruzaram com uma viatura da Polícia. Os bandidos se assustaram e começaram a atirar, e Mário parou o carro, apavorado. ''Toca com essa merda daqui, filha da p****! Toca senão eu te estouro''.
Mário gritava ''É TUDO UM VIDEOGAME, É TUDO UM VIODEGAME! EU NÃO SOU HERÓI NEM VILÃO! EU NÃO SOU HERÓI NEM VILÃO.''
Os policiais cercaram o carro e começaram a alvejar os bandidos. Dois deles morreram, mas um resistia. Até que esse último parou para recarregar a arma e levou um tiro no estômago. Antes de morrer, acertou um tiro nas costas de Mário, e disse: ''Você vai comigo, lazarento!''.

Mário estava sangrando muito, caído no banco do carro. '' ...é...tudo um videogame...eu não posso morrer assim...eu nunca fiz nada de heróico nem de ruim...''. Estribuchou um pouco, e tudo ficou muito escuro.

O despertador tocou às 7:15, salvando Mário de sua angústia. Ele acordou de sopetão, respirando avidamente e suando frio. Desligou o despertador, levantou-se, foi ao banheiro para urinar e depois foi à sala, onde curvou-se para olhar o aquário que ficava sobre uma cômoda.