Monday, April 30, 2007

A última noite

O velho tinha estado doente por alguns meses, mas não estava caquético. Andava, falava, nem parecia ter a idade que tinha. Mas mesmo assim, a doença não estava lhe dando trégua.
O filho e os netos do velho tinham ido visitá-lo no domingo. Geralmente iam embora à tarde, mas nesse dia ficaram até a noite.
O filho do velho disse que era hora de ir, já estava escuro e eles moravam longe. O velho pediu que ficassem. ''Não vai agora, filho, fica pra jantar''.Era um convite sincero, quase como uma súplica.Eles nunca ficavam para jantar no domingo.Sempre iam embora à tarde. Tanto o homem quanto os rapazes pensaram em ficar. Mas o homem, cuja rigidez o impedia de mudar qualquer plano que tivesse, disse que tinham que ir embora.
Os três abraçaram o velho e se despediram. Entraram no carro e saíram. Enquanto o carro mergulhava na escuridão, os três olharam para trás e viram o velho na varanda da casinha. Só podiam ver sua silhueta, de encontro à lâmpada.
Ele ficou parado um longo tempo, observando-os enquanto o carro ia embora até desaparecer em uma curva.
E alguns dias depois, o homem e os rapazes perceberam que o velho estava dizendo adeus.

Thursday, April 19, 2007

Viagens

Desde muito novo, eu sempre tive uma alma de viajante. Posso ter passado toda a minha vida (até agora) em Londrina, viajando a algumas outras cidades esporadicamente, mas nunca deixei de pensar nos outros lugares do mundo.
Se não pude vê-los pessoalmente, ao menos viajei de outras formas. Como pelas revistas ''Geográfica Universal'',que comprei na infância, e posteriormente as viagens virtuais da Internet (que ainda tenho).
Apesar disso, nenhum relato consegue superar os livros escritos sobre viagens. Uma viagem bem descrita, seja por qualquer grande autor, como Marco Polo (cronista) ou Hemingway (romancista, mas cujos livros eram brilhantemente ambientados, e também jornalista e cronista) inflama a imaginação, leva o lugar para dentro de você.
Não gosto muito de programas televisivos sobre viagens. A câmera acaba cerceando a capacidade de imaginação. São interessantes, mas não tem a magia de um livro.
Quem não gosta de ler, e quem não gostaria de escrever como os autores citados e tantos outros? Ah, poder transmitir sensações pelo papel, fazer a mente das pessoas sair do corpo e voar pelos outros lugares!
Relatar algo assim é algo que pretendo fazer, pelo menos uma vez na vida. Talvez todos devessem fazer algum relato, fosse ele de viagens ou não.
Mesmo dentro da menor e mais familiar das cidades, há tantas viagens não-empreendidas, há tantos viajantes que nem se dão conta da viagem.

Saturday, April 14, 2007

Pus e podridão

Certo homem notou um dia, ao olhar-se no espelho, que seu rosto estava cheio de espinhas. Aquilo o incomodou, e resolveu espremê-las. Começou o trabalho dolorido e estourou alguns daqueles incômodos, mas as espinhas estavam muito inchadas e doloridas, então ele não foi muito longe, deixando para continuar espremendo no outro dia.
Veio o dia seguinte, e quando o homem olhou-se no espelho, viu que para cada espinha que havia espremido, tinham nascido mais duas. Ficou com raiva, e resolveu espremer todas as espinhas que tinha no rosto, não importando a dor que fosse sentir.
Passou várias horas em frente ao espelho do banheiro. Ao fim do trabalho, seu rosto estava cheio de pus e sangue, e seus olhos ainda lacrimejavam de dor. Limpou suas faces inchadas e sentiu-se satisfeito.
Mas veio o outro dia, e quando o homem olhou-se no espelho, viu que seu rosto estava uma massa disforme, de tantas espinhas que havia. Além dos olhos, nada podia ser visto de sua face, que era um amontoado de perebas vermelhas.
Diante daquilo, só restava ligar para algum médico. Ligou para vários, mas o preço da cirurgia que ele necessitava para curar seu rosto era muito maior do que ele podia pagar.
Então o homem sentiu-se desesperado. Passou álcool em seu rosto e ateou fogo nele.
Foi salvo da morte por um triz, por um vizinho que ouviu seus gritos de dor e ligou para o hospital a tempo.
O homem ficou internado por muitos dias, com seu rosto envolto em bandagens. Um enfermeiro novato veio e lhe tirou as faixas do rosto, para trocá-las.
O rosto estava pior do que antes. Olhos vazios, cegos e brancos; pele negra e retorcida, como a de um cadáver; dentes a mostra, devido ao derretimento dos lábios.
O enfermeiro não resistiu: ''Mas por que? por que o senhor fez essa merda? agora não tem mais conserto''.
''Mas que me importa?''- disse o homem- ''Agora não enxergo mais nada mesmo''.
E sorriu sem seus lábios.

Thursday, April 12, 2007

Talento

Talento é bom de ter
Mas nada vale se não usado
Guardar um livro sem ler
Manter um tigre enjaulado

Um talentoso joga fora
Sua pretensa habilidade
Medíocre de primeira hora
Tamanha sua ingenuidade

Mas o medíocre esforçado
Tenta um pouco todo dia
Nunca seja consagrado
Vai além do que poderia

Sobre Vivências

Acordo um pouco mais cedo. Deixo o ônibus de lado, hoje vou andar. É longe? É, mas parece mais perto. Sem gente mal-humorada, sem dinheiro gasto, sem depender de ninguém.
Estou mais perto da natureza e de mim mesmo, e é bem melhor do que estar dentro de uma caixa de metal.
Respiro ar com orvalho, piso em grama macia, e vejo beleza que não existe em fotos.
Beleza sinestésica, que me envolve.
Quando chego, corpo e mente estão mais fortes.
A civilização amputadora e castradora do homem jamais poderá vencer seu instinto de sobrevivência.

Wednesday, April 04, 2007

Ubaldo e Ubirajara

Esta história me foi contada por um velho cagando. Não sabia eu que ele estava cagando, apenas fui perceber quando ele virou as costas e vi o ''torôço'' em suas calças. Mesmo assim, este fato não teve relevância alguma sobre a terrível história que aquele lúgubre homem contou-me.


Ubirajara, sessentão desocupado, fez um quiosquinho na rodovia. Montou tudo de madeira, bem caprichado, e pintou um letreiro em uma tábua: ''Pão com queijo d'Ubirajara''. A dois quilômetros do quiosque, colocou uma placa também pintada: ''Daqui a 2km, O melhor pão com queijo da Jacutinga ao Arabope''.
Vendia pão com queijo derretido. Coisa ordinária, mas prestava para os viajantes entediados. Dava um alíviozinho no bolso de Ubirajara. E assim passaram-se alguns anos, e Ubirajara reinava na rodovia com uma pequena prosperidade.
Foi então que veio Ubaldo. Ubaldo montou um quiosque de ''pão com queijo'' 60 metros depois do de Ubirajara,o ''Pão com queijo d'Ubaldo''. Pegou uma placa e escreveu ''Daqui a 2,06 km, O melhor pão com queijo da Jacutinga ao Arabope'', e deixou ao lado da placa de Ubirajara.
Ubirajara ficou irritado, mas pensou que era moda. Logo passava. Foi trabalhando e se remoendo, e Ubaldo não saía de lá. Até que Ubirajara se irritou, e foi falar com o concorrente.
''Escute aqui, seo Ubaldo! O senhor faça o favor de sair daqui, pois está atrapalhando a minha venda!''
''Mas seo Ubirajara, eu só estou trabalhando, que nem o senhor! todo mundo tem o direito de trabalhar.''
''Pois então vá trabalhar em outro lugar, pois eu cheguei aqui primeiro.''
''Ora, mas o senhor acha que essa estrada é sua? que tem mais direito que eu?''
''Eu acho e eu tenho...quando eu era jovem, eu ajudei a calçar essa estrada.''
''Ah,é?'' disse Ubaldo, que era octogenário. ''Pois eu ajudei a calçar essa estrada bem antes do calçamento novo! E nunca reclamei de o senhor ter usado ela quando era 'muito jovem'!''
Ubirajara se resignou diante daquilo, mas não desistiria tão fácil.
No outro dia, voltou ao quiosque de Ubaldo.
''Olha, seu Ubaldo...pelo menos faz favor de vender outro produto. O pão com queijo foi idéia minha!!!''.
Pensou assim que pudesse evitar a concorrência direta, mas nada! Ubaldo começou a vender pão com queijo e presunto, e parece que os fregueses gostaram.
Ubirajara ficou o demônio, e resolveu apelar de vez. Começou a vender pão com salame, queijo e cebola.
Mas Ubaldo contra-atacou: Pão com queijo, presunto e ovo frito.
A luta ia acirrada, até que um sobrinho esclarecido de Ubirajara veio visitá-lo e disse que ele precisava de um ''autidó''.
Então Ubirajara comprou um autidó, todo luminoso, com uma fotona do seu pão. Maravilha. Tava até escrito ''sanduíche-íche-íche'', que nem aquela moça da TV falava.
Mas Ubirajara ficou com medo de que Ubaldo fosse riscar o autidó, ou fazer qualquer maldade.
Então resolveu morar no quiosquinho, que ficava do lado do autidó. Passavam-se os dias e as noites, e lá estava Ubirajara olhando para o autidó.
Um dia, olhou para o lado de Ubaldo e não havia nada. Ele tinha ido embora, Ubirajara vencera. Agora só precisava esperar os fregueses.
Passaram-se várias horas, e freguês nenhum vinha. Mas ele esperava. Estava determinado, era o rei do pão com queijo novamente. Nem sabia ele que a estrada tinha sido desviada, e que ninguém mais passaria por ali. Mas Ubirajara não desistia. Não queria sair dali nunca.
Seu Ubaldo, que tinha lido no jornal sobre a mudança no tráfego, abriu seu quiosquinho na nova estrada.
Já Ubirajara...bem, dizem que em uma estrada abandonada, entre a Jacutinga e o Arabope, um espírito gesticula nervosamente para os passantes de dentro de um quiosquinho em ruínas, por volta da meia-noite.
O quanto isto é verdade, eu não sei. Mas sempre há algo de assustador nas palavras de um velho cagando.