Tuesday, January 15, 2008

Asas Negras

Certa manhã, Antônio estava na garagem de sua casa, preparando-se para ir à faculdade, quando notou algo que lhe perturbou. Dois grandes urubus estavam pousados na sacada de um prédio do outro lado da rua, e pareciam estar observando-o.
‘’Deixa de bobagem, Antônio, são só dois pássaros’’, pensou, enquanto entrava em seu veículo.
Durante a aula, porém, o jovem estava distraído, olhando pela janela da sala, quando viu outro urubu, pousado em uma árvore distante, a algumas dezenas de metros do edifício onde estudava.
Perturbado com aquilo, desviou o olhar e voltou a prestar atenção no professor.
Não pensou mais nisso até visitar a namorada, Luísa, na tarde do mesmo dia. Estavam sentados no sofá da sala do apartamento da garota. Ao olhar pela sacada, que estava bem em frente a eles, Antônio viu um ponto preto pousado sobre a antena de um prédio muito distante, e sentiu um calafrio, tendo um espasmo.
‘’ Que foi Antônio? Você me assustou!’’
‘’Um urubu. Ali, naquele prédio, está vendo?’’
‘’Não estou enxergando nada. Onde?’’
‘’Ali! Olha na direção do meu dedo! Viu?’’
‘’Não. ’’
‘’Ah, mas é um urubu, eu tenho certeza!’’
‘’E qual o problema? Eu também não gosto de urubus, mas é só um bicho’’.
‘’Desde a manhã de hoje, tem sempre um animal desses me observando. Isso não é normal’’
‘’Deixa disso, Antônio, não tem nada lá’’.
‘’Luísa, se eu estou falando que eu vi, é porque eu vi’’
‘’Esquece esse urubu’’, disse Luísa, e beijou seus lábios.

Aborrecido, Antônio voltou para casa e resolveu tirar um cochilo.
Dormiu tranqüilamente e, ao acordar, o pôr-do-sol já se aproximava. Ao virar-se na cama, olhou para a janela e teve uma visão que gelou seu coração por um segundo. No parapeito, separado do quarto por apenas um vidro, um urubu se apoiava, vigiando-o com seus olhos negros e vazios.
Antônio começou a gritar com toda a sua força e a tamborilar no vidro, para espantar o animal. Mas este parecia congelado, e não esboçava qualquer reação.
‘’Chega disso!’’, gritou o jovem, apanhando um martelo que ficava pendurado na parede de seu quarto junto com outras ferramentas. ‘’Vou abrir a janela e matar você, seu demônio’’.
Com a mão direita, empunhava o martelo, enquanto que com a esquerda segurava a beirada da janela, preparando-se para abri-la. No exato segundo em que seus músculos se retesavam para executar aquela tarefa tão assustadora, porém, foi interrompido pelo avô. O jovem morava com ele desde os primeiros meses de vida, já que seus pais tinham morrido num acidente de carro quando ainda era uma criança de colo.
‘’Antônio! O que está fazendo?’’
‘’Esses malditos urubus estão em toda parte!’’
‘’Que urubus? Não estou vendo nada’’
Antônio olhou para a janela, e não viu qualquer sinal da ave. Abatido, sentou -se na cama e suspirou.
‘’Não foi nada, Antônio... Deve ter sido só um sonho ruim’’, disse o velho, e saiu do quarto.
‘’Estou ficando louco’’, disse o garoto para si mesmo.
No outro dia, Antônio acordou cedo para ir à universidade. Ao chegar à garagem, ouviu um barulho abafado dentro de seu carro. Andou na ponta dos pés e viu o que temia: Um urubu, caminhando pelo banco traseiro do automóvel, que estava totalmente trancado.
Aquilo foi demais para a já combalida mente do garoto e, gritando, ele correu para a calçada em frente de casa, onde se sentou no chão e passou a praguejar furiosamente.
Ouvindo os gritos de Antônio, um de seus vizinhos saiu de casa e se aproximou do jovem. ‘’Seu’’ Sebastião, homem já grisalho e vivido, sentou-se ao lado do rapaz e tentou conversar com ele.
‘’Mas o que está acontecendo, Antônio?’’
‘’Ah, ‘seu’ Sebastião, se eu te contasse o senhor não acreditaria. Ninguém acredita em mim. ‘’
‘’Que isso, rapaz. Pode abrir o jogo comigo, eu sou seu vizinho desde que você usava fraldas.’’
‘’Está bem. Não tenho mais o que fazer mesmo. ’’
‘’Fale... ’’
‘’Eu tenho visto urubus por toda a parte. A cada vez, eles chegam mais perto de mim. Ninguém acredita, mas eu realmente posso vê-los’’.
Antônio olhou para Sebastião, que permaneceu em silêncio. O homem estava pálido, com os olhos arregalados e o cenho franzido. Parecia estar tomado de pavor.
‘’Rapaz, eu preciso te contar uma coisa. É terrível, mas é para o seu próprio bem’’
‘’Então, conte’’, disse Antônio.
‘’Há quase vinte anos atrás... O seu pai, pouco antes de morrer, começou a falar que via urubus por todas as partes, igual a você. Alguns dias depois, ele sofreu aquele acidente e faleceu’’.
‘’Mas o que eu posso fazer? O que é isso, afinal?’’
‘’Essas coisas não estão no plano físico, Antônio. Vá até uma vidente. Desculpa, mas não sei como te ajudar mais’’.
Antônio seguiu o conselho e foi até uma tal Madame Dora, que atendia em um pequeno apartamento na parte velha da cidade.
O jovem relatou a sua estranha história à vidente, que já preparava uma explicação mentirosa para o fato, uma vez que não tinha qualquer poder extra-sensorial.
Porém, de repente, Madame Dora começou a tremer, e seus olhos se fixaram no jovem.
‘’Saia daqui agora, rapaz!’’
‘’Por que, o que está acontecendo?’’
‘’Eu vejo um sinal de morte sobre você’’
‘’Como? Que sinal?’’
‘’Eu sempre fui uma vigarista, uma mentirosa. Inventava todas as coisas que via, mas hoje eu vejo algo de ruim em você. Saia , por favor, não quero essa coisa aqui!’’
‘’O que você vê? O que eu posso fazer?’’, gritou Antônio, desesperado.
‘’Eu não sei, não posso descrever. Só sei de uma coisa: Preste atenção em tudo e não confie em ninguém. Seu fim está próximo, rapaz’’.
Então, a mulher desmaiou, e Antônio deixou seu consultório.
Ao voltar para casa, notou que havia vários urubus pousados em seu muro. Porém, estava resignado, e não se importava mais.
Chegou à cozinha e viu que seu avô jantava, e que havia um prato separado para ele. Sentou-se à mesa, sem dizer nada, e começou a comer.
Em meio à refeição, sentiu seu estômago queimar como se tivesse sido atingido por ácido, e começou a transpirar e sentir muito calor. Tomado por muita dor, fechou os olhos por um instante. Quando os abriu, viu que havia quatro urubus em cima da mesa.
‘’O que foi, Antônio?’’, perguntou seu avô.
‘’Os arautos da morte. Eles vieram me buscar, e têm a forma de urubus’’.
‘’Eu sei, eu estou vendo’’, disse o avô.
‘’Como assim? O senhor me disse que não os via’’, resmungou Antônio, já se sentindo tonto e fraco.
‘’ Eu menti sobre esta e muitas coisas. Na verdade, eu não sou seu avô, sou seu bisavô. Eu matei seu avô e seu pai, e agora estou matando você também’’
‘’Mas por que?’’
‘’Eu trabalho para poderes maiores, e preciso de muito tempo para cumprir meus objetivos, tempo que uma vida humana não consegue atingir. Por isso, eu fiz uma barganha com a morte, e ofereço meus descendentes a ela em troca da minha sobrevivência. Seu avô morreu afogado, eu o joguei de um barco e ele jamais foi encontrado; Seu pai morreu em um acidente de carro, eu danifiquei os freios, mas o automóvel ficou tão danificado que ninguém percebeu. E você morrerá envenenado, mas todos pensarão que foi uma congestão. Eu tenho aliados muito poderosos, e por isso meus planos sempre funcionam’’.
Antônio já não tinha forças para falar. Apenas olhava para um urubu pousado em sua barriga, e não se importava mais com nada. Sua cabeça pendeu para frente e ele morreu.
No outro dia, Luísa e o velho estavam no cemitério, sendo os únicos a acompanharem o funeral de Antônio.
Abatida e com os olhos marejados, Luísa olhou para o avô de seu falecido namorado.
‘’Sabe... Ele estava tão distante nos últimos dias. Eu não sei o que aconteceu com ele, mas sinto tantas saudades’’
‘’É, eu sei. Uma pena, não? Tão jovem. ’’
‘’Eu preciso contar uma coisa. Não disse a ninguém, mas não posso esconder mais. Estou grávida do Antônio, já tem algumas semanas. E agora, o que eu faço?’’, e Luísa não conteve o seu choro.
Os olhos do velho brilharam. ‘’Ah, não se preocupe... Nós vamos cuidar dessa criança, vamos cuidar muito bem’’, disse em tom suave.
Uma brisa suave passou pelo cemitério, e o capim farfalhou levemente. Muito distante, quase imperceptível, um urubu planava no imenso azul do céu.

Olho-Vazio

Era uma noite tensa na fazenda, e muito se comentava na senzala, assim como na casa-grande. Salomão, o escravo que havia cometido um impensado ataque a seu próprio senhor algumas horas antes, seria punido pelos feitores e pelo proprietário em pessoa, Álvaro Guimarães dos Reis.
Salomão despertava medo e ódio entre os brancos e admiração entre os negros, porém, não sem uma dose de receio e pavor por parte de seus companheiros de senzala. Era um negro da Guiné, alto e magro. Seus olhos eram escuros e furiosos, o rosto, seco e ossudo como o de uma caveira e ele quase nunca falava, a não ser quando estritamente necessário.
Na verdade, seu nome não era Salomão, sendo que este lhe havia sido dado por um dos feitores da fazenda. Seu passado era desconhecido, e havia boatos de que ele fora um feiticeiro quando na Guiné. Alguns escravos afirmavam tê-lo visto praticando magia negra mesmo no Brasil.
Álvaro Guimarães dos Reis, o senhor de engenho, também era um homem que dividia opiniões. Temido e odiado pelos negros, tinha certo respeito entre os brancos, mas também muitos inimigos. Sua brutalidade para com escravos rebeldes era lendária, e falava-se dele até em terras muito distantes daquela fazenda da Bahia.
Na tarde daquele dia, Álvaro havia sido tomado de desejo por uma negra de quinze anos chamada Laura. Diante da recusa da jovem, tentava violentá-la quando foi parado por Salomão, com um soco que trincou o queixo do senhor de escravos.
Enlouquecido pela dor e pela vergonha, Álvaro ordenou que o escravo fosse acorrentado e trancado em um galpão vazio, anteriormente utilizado para se guardar açúcar. De noite, reuniu alguns feitores de sua confiança e partiram para o galpão, sem revelar seu intuito a ninguém.
Quase todos no engenho acreditavam que Salomão não acordaria vivo no outro dia, ainda que houvesse quem pensasse que seu corpo era fechado.
Sem que ninguém fora do galpão soubesse exatamente o que estava acontecendo, Álvaro executou a sua vingança. Primeiro, o negro foi chicoteado algumas centenas de vezes, ficando com as costas em carne viva. Depois disso, seus braços e pernas foram quebrados por dois feitores, fazendo com que ele berrasse de dor. Não obstante, Álvaro rasgou o lado direito da face do negro com um canivete, vazando o seu olho para fora da órbita.
Finalmente, após tamanho suplício, o senhor se satisfez e mandou enforcar o negro em uma das vigas do recinto. Salomão foi enterrado em uma cova rasa, em meio à mata que circundava a fazenda.
Quarenta anos se passaram, e a propriedade sofreu mudanças. Agora, Álvaro era um velho de setenta anos, e tinha uma esposa e dois filhos jovens nos quais depositava as esperanças de perpetuar o seu legado. Mandou os dois rapazes para estudar em Coimbra, com o fim de que eles pudessem administrar bem a fazenda quando a herdassem.
Após dois anos fora, os jovens voltaram ao engenho a fim de passar lá algumas semanas antes de retornarem aos estudos. Ao descerem da carruagem, trouxeram uma surpresa que gelou o coração de seu pai.
Junto aos rapazes estava um negro, com as mãos e os pés algemados. Era alto, magro e cego do olho direito, ostentava uma profunda cicatriz naquele lado da face e tinha entre trinta e quarenta anos.
Ao vê-lo, Álvaro lembrou-se de Salomão. Como havia se passado muito tempo desde sua morte, já não se recordava mais da aparência do negro, mas teve a impressão de que era idêntico ao outro.
Após cumprimentar seus filhos, interpelou-os sobre aquela presença desagradável.
‘’Por que trouxeram este negro junto com vocês?’’
‘’ No caminho para cá, nós o vimos vagando pela estrada em uma região isolada’’, disse o mais velho. ‘’ Ninguém o conhecia nas fazendas próximas, então trouxemo-lo para o senhor como um presente, pois mesmo não tendo um dos olhos, parece ser ainda forte para o trabalho’’.
Apesar do temor que sentia, Álvaro não quis ser considerado supersticioso, e acabou aceitando aquele presente tão odioso. Porém, procurava não ficar perto do negro, apelidado pelos jovens de Olho-Vazio, e nem lhe dar ordens diretas, evitando sempre a sua presença.
Após algumas semanas na fazenda, os rapazes retornaram a Coimbra. As coisas corriam normalmente, mas Álvaro não se sentia confortável com a presença de Olho-Vazio em suas terras, ainda que este não falasse com ninguém e nunca criasse caso.
Dois meses após a partida dos filhos, o senhor recebeu uma carta escrita pelo reitor da universidade de Coimbra, a qual estava lacrada com um selo que continha o brasão da instituição.
Preocupado, rasgou o envelope e abriu a carta. Ao ler o conteúdo, seu rosto se contorceu de dor e ele se sentou sobre uma poltrona, escondendo a face entre as mãos.
Seus herdeiros estavam mortos, vitimados por uma doença misteriosa que não havia afetado mais ninguém.
Enquanto Álvaro estava recluso em seu quarto, pensando em uma maneira de relatar o ocorrido à mulher, foi interrompido por um de seus capatazes.
‘’ Sinhô, ocê sabe aquele negro cego que os sinhozinhos trouxeram? Acabei de pegá ele fazendo feitiçaria. Dizem que ele tem feito isto desde que chegou aqui’’
Ao ouvir isto, Álvaro sentiu-se furioso. Nunca tinha levado as crenças dos negros muito a sério, mas com a dor que sentia pela morte dos filhos, somada aos receios sobrenaturais que aquele escravo lhe despertava, encontrou nele o seu bode expiatório.
‘’Chicoteiem-no duas mil vezes, não me importa se ele morrer no meio. Agora, saia daqui’’
O capataz se retirou, e Álvaro retornou ao seu sofrimento. Algumas horas depois, contou tudo à mulher, que precisou ser sedada para resistir à tristeza.
No começo da noite, o capataz voltou a falar com seu superior.
‘’Sinhô, nós demos o castigo. Ele ficou com as costa em carne viva, mas nem gritou, e depois levantou e saiu andando’’.
‘’ Certo, então amanhã providenciamos um castigo melhor. Deixe-o acorrentado no velho galpão, e não se atreva a falar comigo de novo esta noite’’.
Cansado e abatido, Álvaro foi dormir junto à mulher, que estava em sono profundo por causa dos remédios. Após passar algumas horas se revirando, ele finalmente adormeceu, e teve um sonho.
Caminhava pelas matas ao redor de sua fazenda quando ouviu as vozes de seus filhos, implorando por ajuda. Ao olhar com atenção, viu os dois rapazes, pálidos e esqueléticos, rastejando em sua direção. Apavorado, começou a andar para trás, sempre olhando para os rostos dos garotos, inexpressivos e sem olhos nas órbitas. Após recuar alguns passos, sentiu que estava pisando sobre terra fofa, como a de uma cova recém-coberta.
Mal este pensamento lhe passou pela cabeça, uma mão agarrou seu tornozelo, e o puxou para baixo. Ao dar conta de si, Álvaro estava dentro da sepultura, encarando o rosto de Olho-Vazio, cuja esclera incolor parecia brilhar. O negro sorriu para ele, e o senhor acordou suado, com o coração batendo forte, e mal conseguindo respirar.
‘’Amanhã’’, pensou, ‘’Vou matar este negro agourento’’. Virou-se para apanhar um copo de água de sua mesa de cabeceira, quando viu com o canto do olho algo se mexendo do outro lado do quarto.
Ao olhar melhor, viu uma silhueta escura se aproximando de sua cama. Forçou a vista e enxergou Olho-Vazio, encarando-o com sua órbita opaca e caminhando em direção a ele a passos silenciosos.
‘’Salomão...’’, gaguejou Álvaro, enquanto o medo lhe tomava novamente. Seu coração, que batia cada vez mais rápido, subitamente parou, causando-lhe uma dor aguda no peito. Seus olhos esbugalharam-se, e finalmente perdeu a respiração, mergulhando na escuridão.
No outro dia, a mulher de Álvaro enlouqueceu, ao saber que além de ter perdido os filhos estava viúva.
Quando os capatazes foram apanhar Olho-Vazio, ele havia sumido do galpão onde fora acorrentado, deixando tudo em perfeito estado. Como havia fugido e onde fora parar, ninguém tinha idéia.
Quanto à propriedade, foi herdada por parentes distantes do antigo senhor, que logo a abandonaram, por terem estranhos sonhos e visões com um negro que não tinha um dos olhos enquanto lá estavam.

Thursday, January 03, 2008

Um facho de luz

Teus lenços ainda estão num canto
Mas você já foi embora
Teu pacote de biscoitos, esquecido, está na geladeira
Mas você já foi embora

Vejo tuas fotos
Mas não posso te tocar

Lembro de teu sorriso espontâneo
Já não posso mais vê-lo

Durante dias eu nadei entre as nuvens
Brinquei, sorri como não o fazia há muito tempo
Agora estou de volta à poeira
Ao vazio
À mediocridade

Mas que importa?
Eu voei, eu fui grande, e você estava a meu lado
Você viu o meu melhor
Foi o meu melhor

Choro a partida de dias tão bonitos
Mas uma esperança me aquece por dentro
Uma voz me diz ''Que isto seja o começo''

E eu procuro aceitá-la
Acreditar nela
Assim a vida continua

E eu me apoio
Com as forças que tenho
Tropeçando, rastejando

Mas prosseguindo.