Friday, June 29, 2007

/para catita/

Com as pedras que me atiraram
Eu construí uma muralha de dor
Na qual eu subi todos os dias
Para matar meus inimigos

Mas você veio com um sorriso
E eu desconfiei
Crivei-te de flechas
Comi teu coração

Mas você ainda sorria
Então eu te torturei das
maneiras mais horríveis
e te causei dores
as mais temíveis

E você ainda estava ali

Então eu te levantei
dei-te um arco e flechas
para matar meus inimigos
e te botei ao meu lado

Wednesday, June 27, 2007

Aquários

Aquários são pedaços de mar enxertados na terra. Em meio a um oceano de concreto, a centenas de quilômetros da água salgada, alguma lagosta anônima vive isolada em meio aos terrestres.
Profissão de risco essa de bicho de aquário. Estar dentro de um recipiente de vinte centímetros de diâmetro, em meio a milhares de quilômetros quadrados de terra, não é pra qualquer um. Já pensou se o negócio quebra? É, ponha-se no lugar da lagosta. Ela é um astronauta vivendo em um planeta estranho.
Além do risco todo, ser bicho de aquário deve ser algo de um tédio transcendental. O que fazer? Afinal, sozinho, num espaço que mal dá pra se mover, vive-se uma existência totalmente niilista.
Pior que chegam as pessoas e se irritam com a apatia do bicho, daí dão petelecos no vidro para chamar a atenção dele. Claro que tem os cartazes solicitando respeito à lagosta, mas também sempre tem alguém para dar petelecos.
Pobre do animal: além de estar encarcerado e entediado, ainda vêm gigantes para lhe encher a paciência.
Alguns aquários têm cenários artificiais. Naviozinhos naufragados, pequenos jarros de barro, corais falsificados. Outros têm até desenhos no fundo, no estilo daqueles cenários hollywoodianos dos anos 50.
Quem vê o aquário acha bonito, mas penso que a lagosta não se importa muito. Porém, talvez essa parafernália toda seja um gesto de consideração do dono para com ela. O que vale é a intenção, não?
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Imagine a cena: Você morre, vai pro cemitério esperando a vida eterna, e alguns milhares de anos se passam.
Depois desse tempo todo, alguém encontra seu corpo e acha a coisa mais fabulosa do mundo. Pesquisas são feitas, você é fotografado, dão-lhe um nome e uma história. Você renasce após a morte.
Botam seu corpo numa cápsula transparente, e você vira atração internacional.
Pois é assim que aconteceu com os faraós. Os coitados viviam fantasiando sobre a morte, e se preparando para ela. No entanto, passaram-se milênios e eles viraram atrações de museu.
Vá ao Louvre, ou ao Cairo. Aí você verá o que o futuro reservou para os sonhadores, que tanto se esmeraram para morrer.
Vive-se a vida eterna em cápsulas de plástico, aquários de gente.

Globalização: Babel Contínua

Jan Grzebski, polonês de 65 anos, acordou no dia dois de junho de dois mil e sete e deparou-se com um mundo totalmente diferente do que conhecia.
Esclareça-se: Ele foi atropelado por um trem em 1988, e ficou em coma durante dezenove anos.
Na época do acidente, a Polônia ainda era um país comunista, alinhado à União Soviética, e o Muro de Berlim dividia a Europa em duas, assinalando os limites da Cortina de Ferro.
Hoje, a Polônia é um país capitalista, que faz parte da União Européia e da OTAN, algo totalmente inimaginável no mundo em que Grzbeski vivia.
No entanto, a mudança que mais chamou a atenção do recém-desperto polonês foi outra: a imensa quantidade de celulares existente no mundo atual.
Quando se fala de computadores, celulares, TV digital, palmtops, estamos falando sobre o que os teóricos chamam de globalização.
Nas últimas décadas, houve um boom de transformações políticas, econômicas, culturais e tecnológicas, que estão transformando o mundo no que o estudioso Marshall Mc Luhan chamou de ‘’Aldeia Global’’.
A tecnologia da informação diminuiu as distâncias, ultrapassou fronteiras e tornou-se uma constante na vida de grande parte dos habitantes do mundo. O planeta está cada vez mais integrado, e de certa forma padronizado.
Pessoas utilizam celulares em lugares distantes como a Polônia, a Nova Zelândia, a África do Sul e o Uruguai; e os excluídos da tecnologia sabem em sua maioria que as inovações existem, e gostariam de poder usufruir delas.
O mundo também se encontra integrado economicamente, politicamente e culturalmente.
Uma oscilação no poderoso mercado econômico norte-americano pode afetar o Sri Lanka; blocos econômicos e políticos surgem por toda a parte (como o maior exemplo, temos a própria União Européia, onde Grzebski descobriu que vive); as tendências de moda e cultura são universalizadas; falar uma segunda língua tornou-se fundamental para milhões de profissionais.
No entanto, essa influência não se dá de maneira igual entre todos os países do globo.
É evidente que os chamados países de Primeiro Mundo, centros financeiros, políticos, e tecnológicos, de certa forma impõe sua cultura ao resto da Terra.
Mesmo entre as nações ‘’desenvolvidas’’, no entanto, há aquelas que influenciam mais o panorama mundial do que as outras.
Tome-se como exemplo a chamada invasão japonesa, ocorrida principalmente na esfera da cultura pop (histórias em quadrinhos, videogames e desenhos animados).
Até a metade da década de 1990, era raro ver desenhos japoneses dominando a grade de programação de uma emissora aberta brasileira (apesar de que já existiam vários enlatados espalhados pelas redes). Hoje, a maioria dos cartoons exibidos nos programas matinais da Rede Globo, por exemplo, veio da Terra do Sol Nascente.
Criaram-se fenômenos culturais como o cosplay, reuniões de aficionados por quadrinhos e desenhos animados japoneses, que se vestem e realizam performances, representando personagens ficcionais.
Não que este fenômeno seja novo. Já nos anos 1960 e 1970, o Brasil tinha pessoas que se vestiam como os Beatles ou Elvis Presley, mostrando que a padronização dos gostos culturais vem de muitos anos atrás.
Interessante notar que a cultura pop japonesa começou a ganhar mais espaço no resto do mundo durante o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, simultaneamente à recessão do Estado de Bem-Estar social norte-americano, ao mesmo tempo em que a economia nipônica crescia a todo vapor.
Quanto mais influência econômica e política um país tem, mais sua cultura influenciará o mundo globalizado.
Porém, apesar de seu poder econômico, o Japão também é influenciado culturalmente pela Europa e pelos Estados Unidos.
Andrij Sonoda Pryjma, brasileiro de vinte anos de idade e descendente de japoneses, foi tentar a sorte do outro lado do mundo.
Notou, com espanto, que até as sociedades tradicionais do Oriente sofrem com a influência cultural das superpotências.
‘’ Tem várias palavras da língua inglesa que foram incorporadas ao idioma japonês, como ‘hamburger’, que se tornou hambaaga e queijo, que eles chamam de chizu.’’
Andrij ressalta que os japoneses mais velhos são tradicionalistas, enquanto que os jovens são mais influenciados pela cultura de massa norte-americana.
‘’Os velhos, da época da Segunda Guerra, tem uns que se recusam até mesmo a escrever com kanji (escrita tradicional de caracteres) porque esse sistema veio da China. Já os novos são mais abertos...na moda, nas músicas, que tem muitas expressões em inglês. Tem até uns extremos, as gyaru (corruptela de girl), que são umas meninas que tingem os cabelos de loiro e arredondam os olhos.’’
No entanto, o dekassegui afirma que a influência cultural sofrida pelo Japão é diferente da que ocorre no Brasil, devido à forte tradição japonesa: ‘’Apesar de ter bastante gente que ‘venera’ os Estados Unidos, também tem até um número razoável de tradicionalistas. Os nomes das pessoas, por exemplo, são bem tradicionais. Diferente do Brasil, onde tem pessoas chamadas ‘Michael’, ‘Wellington’.’’
O Brasil, apesar de ter certa influência japonesa, é um país que sofre principalmente com a influência norte-americana. Desde as expressões como backup e fastfood (poderia citar milhares de outras) até a moda e os produtos consumidos, especialmente midiáticos, o país sofre uma verdadeira invasão anglo-saxônica.
Daí podemos concluir que: 1- Os países desenvolvidos tem uma grande influência sobre a cultura do resto do mundo; 2- Os países desenvolvidos influenciam a cultura uns dos outros; 3- A recepção dos diversos países do mundo às influências da cultura de massa difere, assim como suas tradições e as suas características sócio-econômicas.
Do ponto de vista lingüístico, a influência americana vai além do Inglês. Pode-se dizer que o grande aumento do número de falantes de espanhol no mundo se deve aos Estados Unidos.
O espanhol é a segunda língua mais falada nos EUA, por causa da intensa imigração de latino-americanos (especialmente mexicanos e porto-riquenhos). A imigração latina no país cresceu vertiginosamente nas últimas décadas: de 1950 para cá, o número de hispano-americanos vivendo nos Estados Unidos aumentou de 4 milhões para 27 milhões.
Conseqüentemente, como a cultura dos Estados Unidos passou a ter mais influência hispânica, o resto do mundo passou a dar mais valor ao idioma de Cervantes.
Não há outra razão que explicasse o aumento do número de falantes que não a latinização dos Estados Unidos. A Espanha e suas ex-colônias não tem uma representatividade econômico-política tão grande: Alemanha e França são mais poderosas do que a nação ibérica, e o número de falantes de suas línguas não têm crescido em grande escala. Apesar de já ser uma das línguas mais faladas do mundo, o espanhol perde, por exemplo, para o Hindi, que assim como o alemão e o francês não cresce na proporção daquele.
Filipina Golebiowska, polonesa de dezoito anos, estuda espanhol desde o ano 2000, e fala o idioma fluentemente. Filipina nota que o espanhol está cada vez mais popular em seu país: ‘’A música latina nunca foi tão popular, e muitas escolas de línguas abriram cursos de espanhol’’.
Katharina Vogl, vinte anos de idade, mora na Alemanha. Ela acredita que a língua espanhola superou o francês em número de falantes no país, e relata que vivenciou parte deste processo. ‘’Quando eu era criança, o francês era a segunda língua mais falada na Alemanha. Hoje em dia, depois do Inglês, o Espanhol é a segunda língua ‘comercial’ mais falada’’.
Perguntada se a cultura de massa americana influencia a Alemanha, ela concorda: ‘’Meu irmão, por exemplo, ouve rap o dia inteiro, e usa as gírias. Acho que a MTV tem grande influência sobre as pessoas daqui.’’
Para Katharina, a Alemanha tem certa resistência à ‘’invasão’’, que se dá quando as pessoas crescem: ‘’Quando ficam mais velhas, as pessoas passam a dar mais valor à cultura alemã. Claro que mantêm ainda a influência americana, mas ela tende a diminuir’’.
Carlos Augusto da Silva, arquiteto brasileiro de 45 anos, acredita que a classe média brasileira, que tem mais acesso à mídia e à informação, tem menor poder de resistência às influências externas do que os outros segmentos sociais do país: ‘’Nossa classe média não dá muito valor à cultura local. Prova disso são esses condomínios de ‘luxo’, imitações de modelos estrangeiros até no nome’’.
Que a influência dos países dominantes é um fato, isso não se discute.
No entanto, tal influência não é nova. O Império Romano, por exemplo, foi o responsável pela difusão do latim, que gerou línguas como o italiano, português, espanhol e francês.
A diferença é que hoje a invasão tem um caráter mais comercial, e é acelerada pela comunicação de massa.
Sempre que um grande império ascende, ele espalha sua influência pela Terra, de maneira diferente em cada lugar. Criam-se civilizações padronizadas, mas ao mesmo tempo distintas.
É como se o mundo fosse composto por diversas babéis, sendo constantemente construídas pela padronização, e destruídas pela diferenciação na recepção das influências, num processo contínuo e veloz.

Sunday, June 24, 2007

Asas

Lá se vai o pássaro
Levando em suas asas
meu sonho de liberdade

Cuida bem dele, pássaro
Sonho tão bonito
Não se sonha duas vezes

Coisa descontraída

Sai em condicional
Quem tem direito
A amor incondicional

Thursday, June 14, 2007

Se eu fosse

Se eu fosse um pássaro
eu sairia voando

Se eu fosse uma fogueira
eu arderia

se eu fosse um medroso
eu me esconderia

se eu fosse realista
eu me enfrentaria

se eu fosse um chocolate
eu seria saboroso

Se eu fosse um computador
eu computaria

Se eu fosse uma planta
eu ficaria parado

Se eu fosse eu
eu já não sei

Poderia

Poderia ser uma vaca
poderia ser prece
Poderia ser um camundongo
Ou azul
Poderia ser divertido
ou ofídio
Poderia ser estrume
ou trem
poderia ser charque
poderia ser Estados Unidos da América
poderia ser velha
poderia ser dragão
ou gelo
poderia ser romantismo

...
poderia tudo
mas não deu em nada

Friday, June 08, 2007

Quando eu era criança

Quando eu era criança, teve um dia em que eu comecei a vomitar sem parar. Ninguém sabia o que eu tinha, então eu fui para o hospital.
Acho que eu fui de manhã, não me lembro mais. Sei que me botaram em uma cama e enfiaram uma agulha de soro no meu braço.
Meu irmão, que tinha uns cinco anos, foi pra escola. Meu pai e minha mãe para seus empregos, e eu fiquei lá.
Veio uma enfermeira e disse: ''Se você precisar de qualquer coisa, é só apertar esse botão preto do lado da cama que eu venho''.
Acho que eu não precisava de muita coisa, só de atenção. Então chamei a enfermeira pra tudo, até pra contar que eu tinha visto um avião no céu.
Mas ela não ligava, eu acho. Devia ser comum esse tipo de coisa, quando o paciente era uma criança.
De tardezinha, vieram meu pai e meu irmão, e trouxeram uns livros sobre animais para que eu olhasse. Depois veio minha mãe.
Meu pai e meu irmão foram pra casa, mas minha mãe ia dormir lá. Ela deitou em um sofá e dormiu. Eu fiquei acordado. Era difícil dormir porque eu não podia virar de lado, por causa da agulha no braço.
Me deu vontade de mijar, e eu chamei minha mãe. Ela perguntou se eu não podia segurar, por causa da maldita agulha de novo. Eu disse que não podia.
Então minha mãe pegou o bastão do soro, e foi carregando enquanto eu ia até o banheiro. Eu me aliviei, e voltei pra cama, e acho que consegui dormir.
No outro dia, veio um médico e disse que eu podia ir embora. Então eu tomei um banho e minha mãe me levou pra casa. Não fui pra escola naquela tarde.

Quando estou triste

Quando estou triste
tem as pessoas que mergulham no trabalho
mas eu não consigo fazer nada
Tem as pessoas que chafurdam na comida
mas eu não me satisfaço com nada
Tem as pessoas que assistem TV
mas eu não enxergo nada
Tem as pessoas que ouvem música
mas eu não ouço nada
Tem as pessoas que se drogam
mas eu não sinto nada
Tem as pessoas que se matam
mas eu não vivo em nada
Quando estou triste
sou um vazio
Sou um nada

Wednesday, June 06, 2007

Um dia qualquer chamado seis de junho de dois mil e sete

Vi duas garotas das lindas, as quais nunca poderei ter, no ponto de ônibus da UEL.

''Tudo bem''-pensei- ''ao menos posso olhar'', meio indignado por haver tantas garotas bonitas na UEL, e tão poucas no curso de Jornalismo (se é que há alguma).

Entrei no ônibus e sentei, uma delas estava próxima do meu campo visual. ''Ah, beleza! Poderei olhá-la por toda a viagem!''

Eis que no ponto do RU, o ônibus fica incrivelmente cheio, e já não posso mais ver a garota. Com as pessoas, vem a sensação de desconforto e calor.

''Pelo menos estou sentado''

Viajava assim, quando o ônibus parou no último ponto da UEL, e subiu uma mulher velha, que ficou apoiada em um dos seguradores, ao lado da porta.

''Caramba, será que eu dou o lugar para a velha?''. Vendo que ninguém se dispunha, e que a mulher parecia cansada, ofereci meu lugar, pelo qual ela me agradeceu comovidamente.

''Tudo bem''- eu pensava. ''Quando eu for um velho fraco, espero que alguém faça isso por mim, se eu precisar.''

Pensava nas garotas, mas estavam perdidas na multidão. Por sorte, uma delas descia no ponto anterior ao meu, e pude vê-la por mais alguns instantes.

Diálogos aleatórios - I

Velho 1: Londrina cresce, né?

Velho 2: Londrina cresce.

Velho 1: Quando eu cheguei aqui, essa cidade era pequenininha.

Velho 2: Cinqüenta anos atrás, Londrina era pequenininha.

Velho 1: Londrina cresce em tudo, até em violência. Não dá nem pra ficar em paz em casa mais.

Velho 2: É.

Velho 2: Londrina é famosa, né?

Velho 1: Londrina é famosa.

Os medíocres

Sim, eu admiro os medíocres. Não os que se acham gênios, contudo. Admiro os medíocres que enxergam suas limitações, e prosseguem tentando. Muitos deles valem tanto quanto um verdadeiro gênio.

Aliás, acredito que talento seja construído, e não nato.

O grande ator

Romano era um ator medíocre. Nunca fazia cagadas, por assim dizer, mas também não era um gênio.
Vivia na Itália, como sugere seu nome, e trabalhava geralmente em filmes B.
Mas certo dia, que ocorreu lá pelos anos sessenta ou setenta, ele foi escalado para trabalhar com um diretor de renome.
Sabe como são essas coisas. Mesmo os diretores de renome filmam com atores medíocres, ou até mesmo ruins. Por isso, inclusive, que são diretores de renome. Fazer sucesso com um time de estrelas, até você faz.
Então, esse diretor, Fredo Bianchi, convidou o Romano para fazer um papel de coadjuvante, num filme chamado ''Miséria''.
O ator representaria um mendigo, que contracenava com um parceiro realmente importante, a estrela do filme, Cesare Veroni.
Bianchi era um cineasta muito perfeccionista. Exigia muito de si mesmo, e também de seus colaboradores, mesmo os mais indiretos.
Sabia que Romano era um medíocre, mas acabou vendo um potencial imenso no ator, que apenas não sabia como utilizá-lo.
Assim, quando Romano contracenava com Cesare, Bianchi era extremamente detalhista, e corrigia qualquer erro do ator, por mínimo que fosse.

-Romano, fala com mas energia!
-Não, nem tanta energia assim!
-Isso não é mendigo nem aqui e nem na China!
- Quase bom, mas você tem que falar depois da deixa do Cesare!

Romano se esforçava. Era o típico medíocre persistente. Mas sentia que faltava algo, e isto o incomodava.
Não por causa da opinião do diretor, mas sim pela sua própria autocrítica. Ele queria fazer o seu melhor, e havia anos que tentava sem sucesso.
Assim, mergulhou de cabeça no papel de mendigo. Vestia-se como um indigente quando estava em casa, praticava os gestos olhando-se no espelho e conversava com mendigos na rua, quando não estava trabalhando.
No entanto, todo este esforço não estava dando resultado. Continuava apagado ainda, perto do que sentia que poderia ser.
Era uma sexta-feira. No sábado, a cena mais importante do personagem de Romano seria gravada. Ele não estava contente, Cesare não estava contente e Bianchi não estava contente.
Diante da pressão, resolveu tomar uma cervejinha para se acalmar. Acabou exagerando na dose, e dormiu na rua.
No sábado de manhã, ninguém sabia onde ele estava. Fredo saiu pessoalmente para procurá-lo. Procura daqui, procura de lá, em certa praça encontra o ator, todo descomposto.

-Ora, mas pelo menos já está com o figurino, né, Romano?
- Vê se não é o bacana da TV! Me dá um trocadinho?
-Isso, Romano! É isso que eu quero! Vamos já pro estúdio!

Chegando lá, gravaram a cena. Romano atuou perfeitamente. Parecia estar possuído pelo espírito de um mendigo, se é que mendigos baixam em alguém.
Na segunda-feira, o ator estava já com duas horas de atraso para as filmagens, quando o porteiro do estúdio entrou no set,levando um mendigo todo encardido pelo braço.

- Ele 'tava na frente do estacionamento, falando que queria guardar os carros!

O diretor ficou encantado, e prosseguiram com os trabalhos. Depois de alguns meses, o filme entrou em cartaz, e a atuação de Romano foi elogiadíssima pela crítica especializada.

Tempos depois, Bianchi resolveu convidá-lo para fazer outro filme. Foi até a casa do ator, mas lá recebeu a informação de um vizinho,que afirmava não ter visto Romano havia muitos dias.
O diretor procurou por toda a cidade, até que encontrou seu antigo colaborador dormindo embaixo de uma ponte, com uma garrafa de cachaça pela metade. Romano parecia não se lembrar de quem era.
Então, Bianchi já ia indo embora, quando resolveu dar uma cópia de seu novo script ao ator-mendigo, caso ele tivesse interesse em retornar ao cinema.
Os olhos de Romano brilharam, e ele pareceu recuperar a lucidez. Passou a ler o script afobadamente.
A história falava sobre um jogador de futebol, e meia hora depois de tê-la pego nas mãos, Romano já não tinha mais nada de mendigo:

- A parada é a seguinte, professor. Eu tou com fome de gol, e já tou calibrado pro campeonato.

Fizeram outro filme antológico. Romano ganhou um Oscar, indo à cerimônia com uma loira falsa debaixo de cada braço e um corte de cabelo muito malfeito.
Bianchi entendeu que ele havia se tornado um personagem, e que tinha um ator perfeito em suas mãos.
Romano fez outros filmes com Bianchi, sempre tornando-se o que o diretor desejava.
No entanto, o cineasta acabou se deslumbrando, e deu um filme policial ao seu brilhante ator.
Na noite da estréia, Romano estava chegando ao cinema com seu terno já batido de investigador, quando viu um bandido assaltando um casal.
O garboso herói correu para cima do infame vilão, que acabou, infelizmente, acertando um tiro em seu tórax.
Romano sangrava muito, e Bianchi, em prantos, pediu desculpas e perguntou o que poderia fazer por ele.

-Leve-me para dentro do cinema - disse Romano- Quero assistir um pouco do meu último trabalho.

A sessão começou, e só estavam Bianchi e Romano na sala. Bianchi chorava, Romano assistia atento, apesar de estar sangrando muito.

Em certo momento do filme, uma cena em que uma porta aparecia sendo aberta, Romano gritou energicamente, para a sala de projeção: - Pare o filme, agora!

Sua ordem foi obedecida. Então, ele se levantou, com um grande esforço, e caminhou em direção à tela. Bianchi não entendia o que estava acontecendo, mas parou de chorar.

Romano virou-se, e disse para Bianchi:

- Você é um grande diretor, Fredo, obrigado por tudo!

Então, ele deu um passo adiante, e entrou na tela, passando pela porta que estava aberta.

Romano nunca mais foi visto, a não ser nos filmes em que tinha atuado, os quais permanecem ícones do cinema.

Dizem que se você prestar muita atenção nas imagens de Romano, e ver seus filmes várias vezes, é impressionante como elas sempre parecem mudar. A cada vez que se vê o filme, ele parece atuar melhor.

A melhor forma de arte

A vida é uma arte. Se você quer fazer dela um drama, você faz; se deseja viver uma comédia, idem; Se você não está nem aí, pode ter uma existência dadaísta (que aliás parece ser a mais comum).
Ou então, você pode levá-la com calma, conduzindo-a e ao mesmo tempo apreciando-a, como um espectador.
Difícil, não? É dificílimo sair de si mesmo e voltar-se para observar.
Mas, sabem de uma coisa? Se há um deus, um demônio, um ET ou mesmo se não há nada regendo o universo, este ente ou a ausência dele tem um senso de humor muito peculiar.
Percebi isto hoje, e ri de alguns infortúnios meus, que, por incrível que pareça, eram muito engraçados. Diziam no Exército que ''o pior fracassado é aquele que ri de si mesmo''.
É uma boa frase, mas é relativa. Se o indivíduo ri ressentidamente de si mesmo, para mostrar seus dentes aos outros, rindo de um modo ''amarelo'', concordo que é um imbecil.
Mas se o riso sai puro, espontâneo, isto não tem nada de mau. Apenas minimiza as dificuldades, e as torna mais superáveis.
Se os extremos costumam ser desfavoráveis, vivamos ao mesmo tempo como espectadores e como artistas.